
O Mundo Agora - Trump vive solidao inedita na Casa Branca por erros estrategicos e ataques massivos de adversarios
RFI
Crônica semanal de geopolítica internacional. Os fatos que são notícia no mundo analisados por Thiago de Aragão, direto dos Estados Unidos, e Thomás Zicman de Barros, da Europa.
Location:
Paris, France
Networks:
RFI
Description:
Crônica semanal de geopolítica internacional. Os fatos que são notícia no mundo analisados por Thiago de Aragão, direto dos Estados Unidos, e Thomás Zicman de Barros, da Europa.
Twitter:
@rfi_brasil
Language:
Galician
Contact:
116, Avenue du Président Kennedy Paris, France 1 5640 1212 / 2907
Email:
rfi.portugues@rfi.fr
Episodes
Por que uma invasão dos EUA à Venezuela seria um desastre anunciado
10/20/2025
A ideia de uma intervenção militar dos EUA na Venezuela parece simples: derrubar Maduro e garantir petróleo. Mas o país é um labirinto geográfico e político, com características que poderiam arrastar o conflito por meses, talvez anos, como explica o cientista político Thiago de Aragão.
Thiago de Aragão, analista político
De tempos em tempos, volta à mesa de alguns estrategistas em Washington a ideia de uma intervenção militar na Venezuela. O raciocínio, à primeira vista, parece simples: derrubar Maduro, instalar a democracia e garantir o fluxo de petróleo. Mas basta olhar um pouco mais de perto para perceber que isso seria tudo, menos simples. Na prática, uma invasão americana à Venezuela seria um pesadelo militar, político e humanitário. Um erro que começaria fácil e terminaria impossível.
O primeiro grande inimigo seria o próprio território. A Venezuela é um labirinto natural: selvas úmidas, montanhas que rasgam o horizonte, planícies que viram pântanos e cidades caóticas à beira do Caribe. Tentar mover tropas por esse terreno seria como marchar contra a natureza. O calor e as doenças tropicais fariam parte do combate, e cidades como Caracas e Maracaibo se transformariam em campos de batalha urbanos, onde cada esquina pode virar uma emboscada. Os Estados Unidos já aprenderam (e de forma dolorosa) que dominar o mapa não é o mesmo que dominar o país.
Mas o terreno é apenas parte do problema. A Venezuela construiu, ao longo dos anos, uma estrutura militar que vive mais de lealdade política do que de hierarquia formal. Além do exército, existem milhares de milicianos e “coletivos” espalhados por bairros e cidades, armados e organizados em rede. Eles conhecem o terreno, têm base social e não enfrentariam os invasores de frente. Sumiriam nas comunidades, atacariam de surpresa, arrastando o conflito por meses, talvez anos. Seria uma guerra de desgaste, e ninguém aguenta um pântano desses por muito tempo.
Logística
A logística também seria um pesadelo. Apesar da proximidade geográfica, a Venezuela é de difícil acesso. Poucos portos, estradas precárias e infraestrutura mínima. Sustentar tropas em um país quase duas vezes maior que o Iraque exigiria um esforço gigantesco e caro. Cada avião, cada navio, cada caminhão de suprimentos seria um alvo em potencial. E sem aliados regionais dispostos a ceder bases, os EUA teriam de bancar sozinhos uma operação longa, vulnerável e impopular.
O petróleo, que à distância parece o grande prêmio, na verdade seria o estopim de novos problemas. As principais reservas estão em áreas frágeis, tanto do ponto de vista ambiental quanto político. Combates na região do Lago de Maracaibo ou na Faixa do Orinoco poderiam gerar desastres ambientais catastróficos e destruir boa parte da infraestrutura petrolífera. E mesmo que os poços fossem “tomados”, retomar a produção levaria anos. Em vez de financiar a reconstrução, o petróleo viraria uma fonte de corrupção, sabotagem e instabilidade.
E, se por um golpe de sorte, Maduro caísse rápido, o verdadeiro caos começaria no dia seguinte. O país não tem instituições sólidas, a economia está arruinada e as divisões políticas e sociais são profundas. Sem um governo legítimo e funcional para assumir o controle, a Venezuela se fragmentaria em pedaços, entre facções chavistas, grupos criminosos e líderes locais disputando território. Os Estados Unidos se veriam presos em um tipo de ocupação que já conhecem bem: longa, cara e sem final feliz.
Invadir a Venezuela não seria um ato de força, mas de ingenuidade. O país é uma armadilha disfarçada de solução: um território difícil, com redes armadas entranhadas e uma crise estrutural que não se resolve com tanques. Em vez de um troféu, seria um abismo político e moral. E talvez a maior lição de tudo isso seja justamente essa: algumas guerras são tão complexas que o verdadeiro gesto de poder é não começá-las.
Duration:00:04:22
Na França de Macron, nada muda para que nada mude
10/13/2025
Quatro dias bastaram para que o primeiro-ministro da França caísse — e voltasse, como se nada tivesse acontecido. A crise se arrasta, entre alianças movidas pelo medo e um presidente que repete a mesma estratégia, à espera de um resultado diferente.
Thomás Zicman de Barros, analista político
No domingo, 5 de outubro, após 26 dias de negociações, o primeiro-ministro Sébastien Lecornu anunciou seu governo. Havia dúvida se a oposição — sobretudo o Partido Socialista — tentaria censurá-lo, mas nem foi preciso. Em apenas doze horas, o gabinete implodiu. O golpe veio de dentro: aliados do próprio campo presidencial se rebelaram, a começar pelo líder da direita tradicional e ministro do Interior Bruno Retailleau — um aspirante à sucessão de Macron que parece ter reinventado a lógica política. Se já se conhecia o “apoio sem participação” no governo, Retailleau inaugurava a “participação sem apoio”.
Na manhã seguinte, diante da desintegração da base e da impossibilidade de aprovar o orçamento, Lecornu apresentou sua demissão. Era o quarto chefe de governo a cair em menos de dois anos. Seu antecessor, François Bayrou, havia durado dez meses antes de perder um voto de confiança. Michel Barnier, o anterior, caíra por uma moção de censura.
A origem dessa instabilidade é conhecida. Após sua reeleição em 2022, Emmanuel Macron conseguiu apenas uma maioria relativa no Parlamento. Em 2024, buscando recuperar o controle, decidiu dissolver a Assembleia Nacional de surpresa. Mas o tiro saiu pela culatra: o presidente voltou das urnas com ainda menos deputados. Desde então, cada governo nasce minoritário, dependente de alianças contraditórias e fadado à implosão.
A crise, que começou como um impasse parlamentar, tornou-se uma espécie de paralisia estrutural. Com a saída de Lecornu, reacendeu-se a hipótese de uma nova dissolução — e, junto dela, o coro pela renúncia do próprio Macron. Segundo as pesquisas, 73% dos franceses querem que ele deixe o cargo. Até Édouard Philippe, ex-primeiro-ministro — e outro provável candidato a sucedê-lo — declarou que a solução poderia ser uma eleição presidencial antecipada.
O medo como método
Na segunda-feira, Macron foi visto caminhando sozinho pela beira do Sena. Àquela altura, o presidente parecia encenar sua própria solidão política. Pediu a Lecornu 48 horas para “consultar as forças políticas” e trazer opções.
Na noite de quarta, o premiê demissionário deu uma entrevista melancólica: disse sair frustrado, mas satisfeito por ter “feito o possível”. E deixou escapar o diagnóstico mais preciso da semana: não há maioria para governar, mas há maioria absoluta contra uma nova dissolução.
É esse medo que sustenta o sistema. Nenhum partido — exceto a extrema direita, favorita nas pesquisas — quer voltar às urnas. Os macronistas temem ser varridos. A esquerda, dividida e em crise, também teme perder terreno. Quando o espectro da dissolução voltou a pairar, Jean-Luc Mélenchon propôs uma reunião de toda a esquerda. Os socialistas recusaram. Assim, a Nova Frente Popular foi finalmente enterrada, em meio a acusações mútuas de traição e irresponsabilidade. A esquerda francesa, que havia se unido em torno da esperança de uma alternativa, agora se esfarela diante do ressentimento.
Na sexta-feira à noite, o país recebeu embasbacado a notícia de que Macron havia renomeado Lecornu. O mesmo primeiro-ministro que havia renunciado quatro dias antes voltou ao cargo, como se nada tivesse acontecido. A política francesa entrou oficialmente em modo “Dia da Marmota”, como no filme com Bill Murray: as mesmas cenas, as mesmas falas, os mesmos personagens, revividos até a exaustão. O presidente tenta repetir a fórmula — um governo de “união” sustentado pelo medo da dissolução — esperando resultados diferentes. É improvável que dê certo.
A nova versão do gabinete já nasce sob ameaça: 269 deputados se declararam prontos a votar uma moção de censura, e faltam apenas 21 para que Lecornu caia — de novo. Um simples gesto, à direita...
Duration:00:04:44
Trump instrumentaliza forças de segurança para confrontar estados democratas e ampliar poder presidencial
10/6/2025
A decisão do presidente Donald Trump de nacionalizar a Guarda Nacional da Califórnia reacendeu um debate jurídico e político sobre os limites da autoridade federal. Em meio a protestos em Los Angeles contra operações migratórias, a Casa Branca ordenou a mobilização de cerca de 300 guardas, sem o consentimento do governador Gavin Newsom. Uma tentativa de Trump de instrumentalizar a segurança pública e testar a resistência do federalismo nos EUA.
Thiago de Aragão, analista político
O governador classificou a medida como uma violação da soberania estadual e anunciou ações judiciais. O caso lembra o uso da Guarda Nacional em Portland, quando o governo Trump tentou justificar o envio de tropas sob o argumento de garantir a segurança pública, apesar de autoridades locais afirmarem que a situação estava sob controle. Em ambos os casos, o tema central foi o conflito entre poder federal e autonomia estadual.
A Guarda Nacional é uma força híbrida, sob comando estadual em tempos normais, mas sujeita à federalização em situações excepcionais. TTrump invocou o Título 10 do Código dos EUA e a Lei da Insurreição, alegando enfrentar rebeliões internas. Juristas consideram essa interpretação excessiva, pois a Lei Posse Comitatus limita o uso das Forças Armadas em atividades de polícia interna. Historicamente, a federalização ocorreu para proteger direitos constitucionais, como em Selma em 1965 ou em Little Rock em 1957. No caso atual, a intervenção buscou conter protestos políticos, o que muitos especialistas consideram um uso distorcido da legislação. O precedente preocupa governadores e analistas pela possibilidade de ampliação indevida do poder presidencial.
Segurança pública como ferramenta política
A reação dos governadores democratas foi imediata. Vinte e três deles emitiram uma declaração conjunta chamando a ação de abuso de poder e advertindo que a medida compromete a missão militar da Guarda Nacional. O episódio aprofunda o conflito federativo entre a Califórnia e a Casa Branca, já marcado por disputas sobre clima, imigração e meio ambiente. A crise também reacende o debate sobre até que ponto um presidente pode intervir em políticas estaduais sob o argumento da segurança nacional. O resultado imediato é o enfraquecimento da coordenação entre forças locais e federais e o aumento da polarização institucional.
O episódio expõe o uso político da segurança pública. Trump concentrou ações em estados democratas, reforçando seu discurso de lei e ordem e apresentando cidades como Los Angeles e Portland como símbolos do caos. Governadores e prefeitos democratas afirmam que o presidente distorce os fatos e militariza questões civis. Para o Partido Democrata, o episódio serviu como fator de união em torno da defesa do Estado de Direito e da autonomia estadual. A narrativa de cada lado reforça a divisão política e transforma a segurança interna em campo de disputa eleitoral.
O embate entre federalismo e poder presidencial
Gavin Newsom emergiu como o principal antagonista de Trump. Sua postura firme contra a federalização da Guarda Nacional o projetou como potencial líder nacional dos democratas. Ele tem se posicionado como defensor dos direitos dos estados e da Constituição, explorando a crise para construir capital político. Ao assumir o papel de opositor ativo, Newsom tenta ocupar o vácuo de liderança no partido e consolidar-se como nome viável para 2028. Sua estratégia combina enfrentamento jurídico e discurso institucional, reforçando sua imagem de gestor combativo e pragmático.
A disputa pela Guarda Nacional vai além de uma divergência operacional. Ela revela um embate sobre o alcance do poder presidencial e a integridade do federalismo norte-americano. O episódio redefine os limites da autoridade executiva e coloca em evidência a fragilidade das fronteiras entre segurança nacional e política partidária. Em última instância, a crise serve como teste à resiliência das instituições democráticas diante da crescente instrumentalização...
Duration:00:04:49
Sarkozy condenado: devemos moralizar a política?
9/29/2025
O ex-presidente Nicolas Sarkozy se envolveu num enredo rocambolesco: corrupção, dinheiro sujo vindo da Líbia e até uma guerra vista como queima de arquivo. Sua condenação é justa. O risco é que casos assim alimentem o descrédito da política e o moralismo.
Thomás Zicman de Barros, analista político
Nicolas Sarkozy foi condenado — e por organização criminosa. Não é o primeiro ex-presidente francês a ser sentenciado, mas é o primeiro a receber pena de prisão efetiva: cinco anos, parte deles em regime fechado. Ele se diz perseguido e pode apelar, mas a Justiça decidiu que, como reincidente, deve começar a cumprir a pena já. O caso, com elementos extraordinários, nos faz pensar para além da França, sobre o papel da moral e do moralismo na política.
Mas comecemos pela condenação de Sarkozy. O caso é rocambolesco, quase inacreditável. Se um roteirista apresentasse esse script a um produtor, seria rejeitado por falta de verossimilhança. Sarkozy, então ministro do Interior em 2005 e 2006 — um ministro que se dizia implacável contra o crime, defensor de penas pesadas e crítico do “laxismo” judicial — preparava sua candidatura presidencial. Para financiá-la, enviou seu chefe de gabinete e amigo próximo, Claude Guéant, a captar fundos irregulares. O que no Brasil chamaríamos de “caixa dois”. Até aí, infelizmente, nada fora do comum.
A narrativa muda de tom quando vemos onde o colaborador de Sarkozy foi buscar o dinheiro: em Trípoli, capital da Líbia, e não com qualquer figura. Ele procurou Abdallah Senoussi, genro e braço direito do “Guia da Revolução”: Muammar Kadafi. Não era apenas um genro qualquer. Senoussi era chefe dos serviços secretos militares e um dos responsáveis pelo atentado ao voo UTA 772, que ligava Brazzaville, na República do Congo, a Paris, com escala em N’Djamena, no Chade. Em dezembro de 1989, o avião explodiu em pleno ar, matando 170 pessoas — entre elas, 54 franceses.
Recapitulando: o futuro presidente da França mandou buscar recursos para sua campanha junto a um regime excêntrico, marcado por ligações com terrorismo. Em troca, Sarkozy teria prometido favorecer a reabilitação da Líbia no concerto das nações.
Catorze anos de apurações
Catorze anos de apurações comprovaram que valores foram transferidos em malas, intermediadas pelo empresário franco-libanês Ziad Takieddine. O montante exato é incerto: Takieddine fala em cerca de € 5 milhões, e documentos líbios mencionam até € 50 milhões. Seja como for, foi um mau investimento para o coronel Kadhafi. Ainda não sabemos quando a relação azedou, mas é certo que Sarkozy esteve entre os líderes que, em 2011, conduziram os bombardeios da OTAN contra a Líbia durante a chamada “Primavera Árabe”, ajudando a derrubar o regime e matar o chefe beduíno.
Não cabe aqui reconstituir cada detalhe do processo. Estas crônicas não buscam apenas narrar fatos, mas também propor análise. E a primeira chave para essa análise está na reação pública: para muitos cidadãos, a condenação de um ex-presidente reforça o descrédito da política. Myriam Revault-d’Allonnes — minha orientadora à época do mestrado — discutiu esse risco com grande lucidez em um livro que já traz no título a pergunta-chave: Devemos moralizar a política? (Doit-on moraliser la politique?, publicado pelas edições Bayard, 2002).
Revault-d’Allonnes defende que a corrupção deve ser combatida por uma Justiça independente, mas alerta para os riscos de transformar a política em uma cruzada moral — o que, paradoxalmente, acabaria por corroê-la.
O moralismo anticorrupção abre espaço para o que ela chama de “despotismo moral”, que destrói não a corrupção, mas a própria política enquanto espaço legítimo de disputa entre desejos.
Pânico moral
Não por acaso, a extrema direita sempre soube transformar o moralismo em pânico moral: um dispositivo que pinta os adversários como ladrões, parasitas ou obscenos e promete a ilusão de uma sociedade purificada pela virtude. No fundo, é disso que se trata quando alguns falam de...
Duration:00:04:59
Assassinato de Charles Kirk agrava polarização política nos Estados Unidos
9/22/2025
O assassinato de Charles Kirk, ocorrido em um momento já marcado por tensões políticas nos Estados Unidos, tem consequências que vão muito além do ato em si. Mais do que um crime contra uma figura pública, ele se insere em um cenário no qual a polarização política encontra novos combustíveis para se intensificar. A ausência de um espaço comum entre republicanos e democratas, que já vinha se tornando mais restrita, agora enfrenta mais uma barreira simbólica e psicológica para qualquer tentativa de convergência.
Thiago de Aragão, analista político
A ciência política tem mostrado que a polarização não se limita a discordâncias sobre políticas públicas: trata-se também de identidades sociais e culturais profundamente enraizadas. Republicanos e democratas hoje se percebem menos como adversários políticos e mais como inimigos existenciais. O assassinato de uma liderança carismática de direita tende a reforçar esse quadro, ao alimentar a percepção, no campo republicano, de que seus valores e representantes estão sob ataque. Do outro lado, democratas interpretam o episódio de forma distinta, seja relativizando suas implicações políticas, seja destacando riscos de retaliação e de vitimização discursiva por parte da direita.
A psicologia social ajuda a compreender como tragédias dessa magnitude cristalizam narrativas opostas. O fenômeno conhecido como motivated reasoning leva indivíduos a interpretar os mesmos fatos a partir de predisposições ideológicas prévias, o que significa que cada lado tende a reforçar suas crenças ao invés de se aproximar do outro. Para republicanos, o assassinato pode ser narrado como prova de um ambiente hostil fomentado por elites culturais e midiáticas; para democratas, o mesmo acontecimento é visto como um alerta sobre os perigos de extremismos e discursos incendiários que circulam à direita. A consequência prática é a ampliação do abismo entre os “Estados Unidos vermelhos” e os “Estados Unidos azuis”.
Nesse contexto, qualquer perspectiva de pacificação nacional fica ainda mais distante. O campo republicano provavelmente se mobilizará em torno de uma retórica de martírio e perseguição, buscando coesão interna e pressão sobre instituições. Já os democratas, em sua maioria, tenderão a defender que o episódio exige mais vigilância contra a radicalização política. Essas duas leituras dificilmente se encontram em um terreno comum, pois não partem de premissas compartilhadas.
O resultado é um reforço da lógica de soma zero que domina a política americana atual: se um lado ganha terreno narrativo, o outro lado automaticamente se sente ameaçado. Sem convergência, não há como construir compromissos que reduzam a temperatura política do país. E sem compromissos, os Estados Unidos permanecem presos a uma dinâmica em que cada eleição é percebida como uma batalha existencial, e cada tragédia, como munição adicional para a guerra cultural em curso.
O assassinato de Charles Kirk, portanto, não deve ser lido apenas como um episódio dramático da vida pública americana, mas como um ponto de inflexão que aprofunda tendências já presentes. Ele reforça a lógica da divisão, dificulta qualquer processo de reconciliação e torna mais improvável que republicanos e democratas encontrem o caminho da convergência. A ausência desse caminho, por sua vez, prolonga a era de fragmentação política e social que tem moldado os Estados Unidos do século XXI.
Duration:00:04:14
A façanha de Macron e a crise permanente
9/18/2025
A Quinta República foi desenhada por De Gaulle para ser estável, mas o esgarçamento das prerrogativas presidenciais por Macron ajudou a pôr o país num ciclo contínuo de crise.
Thomás Zicman de Barros, analista político
Em meio à convulsão social e à crise política que têm marcado a França, vale tomar recuo. É fácil perder o foco nas intrigas palacianas, nas disputas no Parlamento, nos cálculos eleitorais e no jogo de culpas sobre quem acendeu o estopim de confrontos entre polícia e manifestantes. Quando afastamos a câmera, no entanto, a imagem fica nítida: Emmanuel Macron tem grande responsabilidade na instabilidade de um regime desenhado para ser estável.
Como adiantei há duas semanas, na segunda-feira, 8 de setembro, a Assembleia Nacional derrubou o então primeiro-ministro François Bayrou: a confiança no governo foi rejeitada por 364 votos a 194. No dia seguinte, sem surpreender ninguém, Macron nomeou Sébastien Lecornu — um de seus aliados mais próximos — para o cargo. Ainda assim, a cena é espantosa: Lecornu é o quinto primeiro-ministro desde a reeleição de Macron, em 2022. Sim, o quinto — depois de Élisabeth Borne, Gabriel Attal, Michel Barnier e o próprio Bayrou. E os quatro últimos se revezaram só no último ano.
Por que isso chama a atenção? Porque a Quinta República foi desenhada por Charles de Gaulle para estabilizar a política francesa, marcada, no pós-guerra, por crises sucessivas. O arranjo institucional levou ao limite o poder presidencial. Antes de chegar ao Palácio do Élysée, François Mitterrand descreveu esse desenho como um “golpe de Estado permanente”, por permitir que presidentes carismáticos tutelassem o Parlamento e contornassem o Legislativo por meio de referendos.
Em 2000, a redução do mandato presidencial para cinco anos e a sincronização do calendário com as legislativas reforçaram ainda mais a estabilidade, praticamente eliminando a coabitação — quando o presidente perde a maioria e precisa nomear um primeiro-ministro da oposição. À luz disso, a crise quase permanente dos últimos anos salta aos olhos.
É verdade que a turbulência é global. Mas Macron tem contribuído para agravá-la. Desde 2017, ele usa mal a poderosa caixa de ferramentas do presidencialismo francês — a ponto de desgastá-la. Seus predecessores, mesmo fortes, procuravam exercer prerrogativas dialogando com as forças sociais e políticas, os chamados “corpos intermediários”. Macron, jovem, ousado e estreante que por um capricho da história chegou ao topo, escolheu a via oposta. Chegou a descrever os franceses como “gauleses refratários à mudança”, dependentes do Estado, e defendia transformar o país numa “start-up nation” de cima para baixo — o que implicava pouco ou nenhum diálogo com sindicatos, prefeitos e partidos.
Esse voluntarismo sem lastro levou à crise dos Gilets jaunes (Coletes amarelos), que incendiou o país entre o fim de 2018 e o início de 2019. Em 2022, veio a façanha: garantir a própria reeleição e, ao mesmo tempo, perder a maioria parlamentar — algo que poucos julgavam possível. Em 2024, ao tentar reverter o quadro com uma dissolução surpresa da Assembleia, reduziu ainda mais a bancada presidencial e agravou a crise de legitimidade. Ao longo de todo esse período, Macron — que em 2019 chegou a evocar De Gaulle para sustentar que um presidente sem apoio popular deveria renunciar, como o próprio fez em 1969 após perder um referendo — recusou-se a mudar de rumo. Preferiu explorar uma Assembleia fragmentada para fazer avançar políticas sem apoio majoritário.
O resultado está à vista: em vez de “virar a página” da extrema direita, como havia prometido, os anos de Macron no poder assistiram à normalização e ao fortalecimento desse campo. Enquanto isso, a insatisfação que não encontra saída no Parlamento transborda novamente para as ruas. Lecornu tomou posse em 9 de setembro, na véspera do primeiro ato do movimento “Bloquons tout” (“Vamos bloquear tudo”). E, nesta quinta, 18 de setembro, está previsto o segundo momento da...
Duration:00:04:03
Como a corrida por data centers está reescrevendo a política energética dos EUA
9/8/2025
Os Estados Unidos passaram anos com o consumo de eletricidade praticamente estagnado. De repente, a inteligência artificial entrou em cena e mudou este quadro. O Departamento de Energia estima que os data centers, que em 2023 já consumiam cerca de 4,4% da eletricidade do país, podem chegar a algo entre 6,7% e 12% até 2028, o que equivale a 325 a 580 TWh. É muita coisa em muito pouco tempo. O problema é que não dá para erguer uma linha de transmissão de energia como quem atualiza um aplicativo.
Thiago de Aragão, analista político
No operador PJM, a maior malha do país, que cobre do Meio-Atlântico ao Meio-Oeste, as projeções de carga deram um salto. O relatório de 2025 fala em crescimento médio de 3,8% ao ano no pico de inverno na próxima década, um ritmo raríssimo para padrões norte-americanos e puxado por novas cargas gigantes. Não à toa, o próprio PJM abriu um processo acelerado para criar regras específicas de conexão de megacargas, em especial data centers. É a burocracia tentando correr atrás da nuvem.
A dinâmica econômica também mudou. Por anos, as Big Techs compraram certificados que comprovavam que uma certa quantidade de eletricidade foi gerada a partir de fontes renováveis, (Certificados de Energia Renovável, RECs) ou através de contratos de compra e venda virtuais ou financeiros de energia a longo prazo, em que não havia entrega física; o termo de compromisso era usado para fixar um preço da energia no mercado e garantir previsibilidade financeira.
Agora, a discussão é sobre lastro: contratos longos de energia física, isso é, o comprador garante a compra de uma quantidade de energia ou a produção de um parque renovável. A Microsoft, por exemplo, assinou um contrato de compra e venda de energia elétrica (PPA na sigla em inglês) de 20 anos com a Constellation, empresa americana de produção de energia de baixo carbono, para viabilizar a retomada da usina nuclear de Three Mile Island. A Meta fechou outro contrato de 20 anos com a mesma empresa para o complexo nuclear de Clinton, em Illinois. Esses arranjos não são apenas marketing de sustentabilidade; são a forma de garantir gigawatts 24/7 para operações que não podem piscar.
Nem tudo, porém, é plug and play. O caso Amazon–Talen, na Pensilvânia, em que um data center foi construído colado à usina nuclear de Susquehanna, virou novela regulatória. A FERC rejeitou duas vezes o acordo de interconexão que buscava ampliar o fornecimento direto “porta a porta”, por temores de custo e impacto na rede compartilhada. A moral da história é simples: estar perto de uma usina ajuda, mas não anula as regras sobre quem paga pelo fio. Esse recado já foi ouvido em outros estados.
E quem paga, afinal? Alguns estados começaram a definir tarifas e classes específicas para hipercargas. Na Virgínia, a Dominion propôs uma categoria nova de tarifa para data centers muito grandes e, em paralelo, ganhou autorização para construir uma linha de transmissão que atende apenas um hyperscale em Alexandria. A decisão gerou protestos de bairros vizinhos e revelou o óbvio: a “nuvem” tem 230 kV e passa no quintal de alguém.
Demanda real e fantasma
Do lado dos planejadores, há outro nó difícil: o que é demanda real e o que é “demanda fantasma”? Com a corrida por IA, desenvolvedores entram em múltiplas filas de conexão ao mesmo tempo, muitas vezes para o mesmo projeto. O resultado é um inchaço artificial dos números que pode levar a redes superdimensionadas e depois subutilizadas, e essa conta sobra para o consumidor. O Wall Street Journal contou bem essa história dos “data centers que nem existem e já assombram a rede”.
No Sul, a Georgia Power redesenhou seu plano de recursos para segurar o carvão por mais tempo, investir em baterias e gás adicional e ampliar solar, tudo com um olho atento nos data centers. É uma boa síntese do momento: a transição energética continua, mas a sequência das peças mudou por causa da IA.
E a nova geração de tecnologias nucleares? Os SMRs, reatores nucleares pequenos,...
Duration:00:03:52
Com queda anunciada de primeiro-ministro e pressão das ruas, Macron está cada vez mais isolado
9/1/2025
Ao repetir que não renunciará, Emmanuel Macron reforça exatamente a hipótese que tenta afastar. Entre a queda anunciada de François Bayrou, a pressão das ruas e a ausência de maioria parlamentar, o presidente francês se vê cada vez mais isolado.
Thomás Zicman de Barros, analista político
Poucas frases são tão perigosas na boca de um governante quanto “não vou renunciar”. Quando precisa pronunciá-la, é porque a ideia já circula no ar. Afinal, se a renúncia fosse impensável, por que mencioná-la em voz alta? A política, como a psicanálise, tem esse paradoxo: quanto mais se tenta negar, mais a hipótese ganha corpo. Na semana passada, diante da crise política que se agrava na França, Emmanuel Macron repetiu que cumprirá até o fim o mandato que lhe foi confiado. Mas, ao insistir nisso, deixa entrever que o contrário — sua queda antecipada — ronda os bastidores da Quinta República.
O desmentido de Macron vem em meio à crise que ameaça derrubar seu premiê, François Bayrou. O primeiro-ministro se vê acuado tanto no Parlamento quanto nas ruas. A crise parlamentar tem data marcada: Bayrou pediu que a Assembleia Nacional lhe dê um voto de confiança no dia 8 de setembro diante das dificuldades pressentidas em aprovar um orçamento austero — cortes de gastos, supressão de feriados, medidas justificadas em nome de uma crise fiscal. Ele sabe, porém, que a chance de conseguir esse apoio é quase nula — não menos porque a crise fiscal é responsabilidade dos próprios macronistas, que governam o país faz oito anos —, e que será levado a entregar o cargo. É curioso notar que o dia da iminente queda de Bayrou foi escolhido para reduzir danos: em 10 de setembro está agendado o grande movimento de protesto Bloquons tout (Bloqueemos tudo), comparado aos Gilets jaunes (Coletes amarelos), que, com apoio sindical, promete parar o país. A aposta do governo é que a saída do premiê na véspera esvazie a mobilização.
Apenas a saída de Bayrou, porém, não reduz as dificuldades de Macron. Talvez apenas as acelere num ritmo mais contido. O problema é mais profundo. Desde sua reeleição em 2022, ele nunca contou com maioria sólida, nem parlamentar, nem social. A dissolução surpresa do parlamento, em 2024, que pretendia virar o jogo, apenas agravou a fragilidade, reduzindo ainda mais sua base e produzindo um legislativo fragmentado. Apesar da instabilidade, o presidente não aceitou rever sua linha programática, insistindo em reformas e austeridade que parecem cada vez mais em descompasso com os anseios dos cidadãos.
Macron insiste que não deseja nova dissolução, porque o país precisa de estabilidade. Mas ele e seus partidários temem, acima de tudo, repetir uma dissolução que apenas reduza ainda mais seus assentos, intensificando a paralisia do país e a impopularidade do presidente. Com a queda do governo Bayrou — o quarto desde 2022, um recorde na Quinta República, concebida justamente para garantir estabilidade política —, Macron provavelmente buscará nomear outro premiê do seu campo capaz de costurar alianças mais amplas. É provável que, em troca de apoio, ofereça concessões cosméticas, celebradas como grandes vitórias pela direita e pelos socialistas – e descumpridas tão logo a crise imediata esteja contida. Mas sem inflexões na sua política, e diante da pressão das ruas, a equação pode não fechar. E, caso mais um governo caia ou o orçamento não seja aprovado, o presidente poderá ser empurrado a dissolver novamente a Assembleia e convocar eleições antecipadas.
A extrema direita e a esquerda radical, que lideram as forças de oposição, parecem as mais interessadas em colocar o presidente contra a parede. Não querem, sobretudo, parecer em descompasso com a onda de protestos que prometia eclodir. Mas a verdade é que os cálculos políticos de todos os lados são arriscados, e nenhum campo está em posição confortável. Todos os partidos já estavam com as energias voltadas para as eleições municipais do próximo ano e se veem pouco preparados para legislativas...
Duration:00:04:40
A direita festiva é global e a esquerda perdeu a ousadia
8/18/2025
Ao redor do mundo, a extrema direita transformou a transgressão em combustível político. A esquerda, que já foi sinônimo de contestação, parece ter esquecido como quebrar regras, e paga o preço por isso.
Thomás Zicman de Barros, analista político
A rebeldia virou de direita? Essa é a pergunta e o título do livro do jornalista e historiador argentino Pablo Stefanoni, radicado em Paris.
Traduzido para o português pela Editora da Unicamp, o livro já tem alguns anos. Hoje, a pergunta soa menos como um enigma e mais como um diagnóstico precoce.
Stefanoni estudou Javier Milei muito antes de ele se lançar candidato à presidência argentina, quando ainda era um bufão de programas de auditório convertido em deputado. E fez isso num momento em que, após a vitória de Biden contra Trump, muitos se deixaram levar por um otimismo enganoso: acreditavam que a “onda de extrema direita” havia sido contida e que a história voltaria a seu fluxo “normal”.
Stefanoni escapou dessa miopia porque percebeu o surgimento de uma estética política que desafiava não só as instituições, mas também quem, por séculos, detinha o monopólio da contestação: a esquerda.
A esquerda, historicamente, foi a força que ousava romper convenções, questionar hierarquias e expor as formas invisíveis de dominação. Era a esquerda quem quebrava tabus, desafiava a moralidade (e o moralismo) para expor a nu as injustiças.
Nos anos 1960, a turma do Pasquim cunhou a expressão “esquerda festiva”, combinando boemia e política. Nas últimas décadas, no entanto, esse ímpeto transgressor foi se perdendo. A esquerda se tornou conservadora, quiçá “careta”: ao invés de questionar as regras, passou a multiplicar códigos de como se portar, de como falar e, com isso, perdeu o seu vigor.
Em 2014, um famoso colunista brasileiro defendia a necessidade de uma “direita festiva”. Sem saber, estava traçando um programa para a década seguinte, de tamanha força que foi muito além dos desejos do próprio autor.
A transgressão, o ato de quebrar regras, falar o proibido, ridicularizar o que é tido como sagrado, tem um apelo visceral. A psicanálise ajuda a entender por quê: todos somos atravessados por faltas, angústias e frustrações. É comum projetar nelas a sensação de que existem regras sociais nos controlando.
Na transgressão existe uma promessa de gozo. É o triunfo da vontade do homem branco viril: a fantasia de poder fazer o que quiser, quando quiser, sem limites. E os incomodados que se mudem, para Cuba, de preferência! Essa promessa é sedutora, e o crescimento do discurso masculinista também bebe dessa fonte, sobretudo quando aparece embrulhada em discursos que se apresentam como “corajosos” e “politicamente incorretos”.
Mas não se deve esquecer: a transgressão de extrema direita não emancipa ninguém. Muitos de seus militantes acreditam – com certa razão – que, por décadas, suas ideias foram tabu e suas vozes informalmente silenciadas.
Antigas formas de dominação
É inegável que as mudanças sociais e midiáticas recentes deram espaço a quem estava na periferia do debate. Mas para quem, exatamente? Não estamos falando aqui de discursos emancipatórios, democráticos, que questionam hierarquias sociais para ampliar direitos. O discurso transgressivo da extrema direita não abre espaço para novas liberdades, mas apenas reforça antigas formas de dominação. A quebra de tabus, nesse caso, serve para justificar a violência contra minorias, corroer direitos e aprofundar desigualdades.
Sim, essa rebeldia tem limites. Às vezes a extrema direita dá passos maiores do que as pernas. A tomada do Capitólio em Washington, assim como o ataque à Praça dos Três Poderes em Brasília, foram tão transgressivos e violentos que afastaram mais gente do que atraíram. Por isso, alguns conservadores falam na necessidade de uma paradoxal extrema direita “moderada”, na necessidade de “normalização”, como seria o caso de Giorgia Meloni, líder neofascista italiana que hoje se apresenta como gestora responsável.
Mas é...
Duration:00:05:05
Com tarifas dos EUA, Brasil acelera diversificação e pode reforçar posição no comércio global
8/11/2025
O aumento das tarifas impostas pelos Estados Unidos a produtos brasileiros reacendeu um debate que já vinha ganhando espaço no comércio exterior do país: a necessidade de diversificar mercados. A medida, que encarece significativamente a entrada de bens brasileiros no mercado americano, força produtores e exportadores a buscarem novos destinos para manter o fluxo de vendas e proteger suas margens.
Thiago de Aragão, analista político
Entre as alternativas mais promissoras estão os países árabes, que vêm ampliando o interesse pelo agronegócio brasileiro como forma de substituir parte das importações provenientes dos EUA. O potencial desse mercado é expressivo, tanto pela demanda por proteína animal e grãos quanto pela disposição em firmar contratos de longo prazo.
A China continua sendo um pilar central da pauta exportadora do Brasil. Já consolidado como principal comprador de commodities brasileiras, o país asiático tem ampliado sua presença especialmente nos segmentos de carne, soja e açúcar.
A relação comercial com Pequim, fortalecida por anos de trocas consistentes, ganha ainda mais relevância em um cenário de disputas comerciais globais, no qual o Brasil se apresenta como um fornecedor confiável e competitivo.
Acordo UE-Mercosul
No horizonte próximo, a União Europeia desponta como outra possibilidade estratégica. O acordo Mercosul-UE, se ratificado, trará reduções significativas de tarifas sobre produtos agrícolas como carnes, sucos e café, abrindo espaço para maior penetração no mercado europeu. Para o setor agroindustrial brasileiro, isso significaria acesso facilitado a um público de alto poder aquisitivo e exigente em qualidade.
O Japão também começa a entrar no radar com mais força. Negociações recentes indicam uma abertura gradual para a carne brasileira, inicialmente restrita a alguns estados, mas com possibilidade de ampliação. Trata-se de um mercado de alto valor agregado e com potencial de crescimento à medida que barreiras sanitárias e logísticas forem superadas.
Mesmo com o peso das tarifas, o mercado americano não desaparece do mapa. Pelo contrário, ainda abriga oportunidades específicas. O Brasil registrou exportações recordes de carne fresca para os Estados Unidos recentemente, demonstrando que, com planejamento e ações pontuais, é possível manter uma participação relevante mesmo diante de custos mais altos.
A combinação desses movimentos revela um Brasil mais atento à necessidade de construir uma rede de compradores diversificada. A crise tarifária nos Estados Unidos, em vez de representar apenas um obstáculo, pode se tornar um catalisador para que o país consolide sua presença em diferentes regiões, equilibre riscos e fortaleça sua posição no comércio global.
Duration:00:03:44
Trump, a tormenta, e a arte de resistir
8/4/2025
Diante do tarifaço de Trump, União Europeia e Brasil reagiram de formas distintas – e o saldo político revela que atualmente os símbolos parecem importar mais do que indicadores econômicos.
Thomás Zicman de Barros, analista político
Ainda no primeiro mandato de Donald Trump, durante uma sessão de fotos, o famoso fotógrafo Platon perguntou ao presidente: “Como o senhor faz para navegar nas tormentas da política americana?”. “Eu sou a tormenta”, respondeu ele. A frase, um tanto cinematográfica, sintetiza como poucas o espírito disruptivo de diversos líderes populistas. Trump não se vê como alguém que responde aos ventos da história, mas como o próprio vendaval. Ele não joga segundo as regras, mas busca reescrevê-las. Seu estilo político é o da disrupção permanente, da ameaça constante, da teatralização do conflito como método de governo.
A recente imposição de tarifas alfandegárias escancarou novamente essa forma de agir. Em um mundo já tensionado por múltiplas guerras e por uma reorganização geopolítica profunda, Trump retorna ao centro do palco como força desestabilizadora. Sua política comercial não responde à racionalidade econômica. Sua principal vítima são os consumidores americanos, que pagarão a conta. Trump também aprofunda a crise da hegemonia americana, dilapidando a confiança que por um século marcou o domínio dos EUA no cenário global. Mas suas ações obedecem à lógica do espetáculo. Tarifar, para ele, é antes de tudo um gesto simbólico: contra a fraqueza americana, marcar território, humilhar parceiros, fazer da imprevisibilidade uma arma.
Como apontava Max Weber, o carisma – especialmente o carisma que pretende instaurar um mundo novo – se opõe à rotina, às formas automáticas e estáveis de reprodução social. Ainda assim, Trump está longe de ser onipotente. Seus recuos frequentes – mesmo quando precedidos por ameaças radicais – revelam que seu poder depende mais da intimidação do que da imposição duradoura.
A pergunta que se impõe, então, é como responder a esse tipo de poder. E, na semana que passou, vimos o contraste entre as reações da União Europeia e do Brasil.
Liderança europeia contestada
Do lado europeu, diante do anúncio inicial de 30% de tarifas, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, apressou-se em buscar uma negociação. Na semana passada, reuniu-se com Trump no campo de golfe de Turnberry, na Escócia, onde ele anunciaria pessoalmente o novo acordo com tarifas reduzidas a 15%. Uma redução de danos depois do choque inicial, mas que deixou sequelas políticas. Von der Leyen foi criticada, sobretudo na França, onde tanto o presidente Emmanuel Macron quanto o premiê François Bayrou denunciaram a capitulação. Não se trata apenas do teor das tarifas, mas daquilo que se comunica ao mundo: a Europa – que já depende dos Estados Unidos para sua segurança militar – parece incapaz de se contrapor aos caprichos de Trump, que impunemente cria o caos nas práticas do comércio internacional.
O Brasil, por sua vez, respondeu de forma distinta. Embora mantenha déficits comerciais com os Estados Unidos, foi alvo de uma retaliação ainda mais dura, com a ameaça de tarifas de até 50%. Mas os motivos ultrapassavam o campo econômico: a medida foi alimentada por pressões da extrema direita brasileira, em especial de membros da família Bolsonaro, que atuam nos bastidores em Washington para atacar as instituições do país. A ofensiva contou ainda com o apoio de setores das Big Techs, contrários a iniciativas de regulação em curso no Brasil. O alvo principal era o Supremo Tribunal Federal – sobretudo o ministro Alexandre de Moraes, que viria a ser sancionado sob a chamada lei Magnitsky. O episódio incluiu o cancelamento de vistos de magistrados e declarações públicas contra o Judiciário brasileiro.
Apesar da pressão, o governo Lula não cedeu. E mesmo com os canais de negociação direta inicialmente fechados, viu os EUA recuarem, anunciando que quase metade dos produtos brasileiros seria isenta das taxas...
Duration:00:05:21
Brasil precisa envolver setor privado nas negociações tarifárias com Washington
7/28/2025
A disputa comercial entre Brasil e Estados Unidos caminha para um ponto de ebulição, com a tarifa de 50% prestes a entrar em vigor em 1º de agosto. O que se vê é uma urgência palpável, mas o governo brasileiro parece insistir em uma abordagem que soa mais como hesitação do que como astúcia.
Thiago de Aragão, analista político
Apesar de ter explorado canais diplomáticos tradicionais, reuniões, cartas formais e argumentos técnicos, nada surtiu efeito na Casa Branca. Trump mantém um silêncio ensurdecedor, valendo-se da intimidação como moeda de troca, um truque que já conhecemos, mas ao qual o Brasil responde com uma passividade que deixa a desejar.
Aqui, cabe questionar: será que essa estratégia de “silêncio como tática” não reflete, na verdade, uma falta de assertividade por parte do Brasil? A legislação permite retaliações calibradas, produto a produto, mas o que se observa é um excesso de cautela, com esforços nos bastidores que priorizam diálogos discretos com empresas americanas, o USTR e aliados no Congresso.
O argumento de que as tarifas machucam mais os consumidores e indústrias dos EUA é válido, mas depender tanto dessa narrativa externa revela uma vulnerabilidade: o Brasil parece apostar em que os outros resolvam o problema, em vez de impor consequências mais imediatas.
Enquanto isso, o cardápio de alternativas, de apelos à OMC a revisões de contratos, passando por retaliações seletivas como cortes em incentivos para plataformas de streaming ou obstáculos em licitações para firmas americanas, é montado com lentidão excessiva. Essa demora em agir de forma mais decisiva pode ser interpretada como uma fraqueza, permitindo que os EUA ditam o ritmo sem pressa.
"Ingenuidade"
A visão pragmática sugere que operar em múltiplas frentes é essencial, mas o Brasil peca ao priorizar adiamentos curtos, como 30 ou 60 dias, na esperança de que articulações políticas nos EUA deem frutos. Essa dependência de prazos estendidos, sem contramedidas mais robustas em paralelo, arrisca prolongar a incerteza e enfraquecer a posição negociadora. As retaliações pontuais, quando desenhadas, vêm com um cuidado exagerado para não “fechar portas”, o que, em um jogo assimétrico, pode ser visto como ingenuidade.
Há, sim, um esforço para diversificar parcerias, olhando para Europa, países árabes, Índia e África, o que é louvável em teoria. No entanto, essa movimentação silenciosa não passa de uma reação tardia a uma dependência histórica dos EUA, e usá-la como argumento nas negociações, “a fila anda”, soa mais como blefe do que como ameaça crível, especialmente se não for respaldada por ações concretas e rápidas.
No fundo, o Brasil não está jogando para vencer com gritos, mas sua preferência por ganhar tempo, sem uma dose maior de firmeza, pode se revelar uma estratégia aquém do necessário. Nessa partida desequilibrada, uma postura mais crítica e proativa faria toda a diferença para não se tornar mero espectador de suas próprias desvantagens.
Duration:00:04:48
Democracia ofensiva: lições compartilhadas entre França e Brasil no combate à extrema direita
7/21/2025
Enquanto Marine Le Pen tem sua inelegibilidade confirmada pela Corte Europeia de Direitos Humanos e Jair Bolsonaro acumula reveses no Brasil, um contraste emerge: as instituições de ambos os países têm reagido aos ataques da extrema direita de forma mais eficaz do que nos Estados Unidos sob Donald Trump. Mas resistir não basta.
Thomás Zicman de Barros, analista político
Quatro dias atrás, um alto tribunal agravou a situação de uma das principais lideranças da extrema direita. Já inelegível, ela agora vê o risco de prisão se aproximar. Seus aliados, previsivelmente, falam em perseguição política.
Não, não estou falando do Brasil – mas sim da Europa. Mais especificamente, de Marine Le Pen, líder da extrema direita francesa, cujo recurso de inelegibilidade foi considerado improcedente pela Corte Europeia dos Direitos Humanos. É claro que há diferenças importantes entre o caso francês e o brasileiro. Jair Bolsonaro enfrenta acusações que envolvem diretamente uma tentativa de golpe de Estado e a abolição violenta do regime democrático. Ele era o messias da “ralé” que depredou a Praça dos Três Poderes.
Le Pen também lidera uma “ralé” radicalizada – marcada, desde a época de Jean-Marie Le Pen, por atentados e episódios de violência política. Mas ela busca parecer mais frequentável e, por ora, a acusação que pesa sobre ela – também bastante grave – diz respeito ao desvio de fundos do Parlamento Europeu, usados para financiar membros de seu partido com verbas destinadas a assessores parlamentares. A decisão confirma sua exclusão da eleição presidencial de 2027 e atinge o coração de sua credibilidade pública e da suposta “ética patriótica” que ela proclama.
Outro contraste importante está na reação internacional – ou, neste caso, na quase ausência dela. Quando Le Pen foi condenada criminalmente no início do ano, Trump reagiu com vigor, também classificando o caso como uma “caça às bruxas” e bradando “Free Marine Le Pen!”. Mas, diante da decisão da Corte Europeia dos Direitos Humanos, manteve-se em silêncio. Diferentemente do que fez no caso brasileiro, limitou-se, por ora, a prometer tarifas de “apenas” 20% sobre produtos europeus – mesmo havendo, aqui sim, um déficit comercial real com os Estados Unidos. Também não cassou o visto de nenhum juiz europeu. Talvez ainda não veja vantagem, ou talvez porque Le Pen, um pouco mais inteligente e menos sabuja, não tem membros da sua família fazendo lobby em Washington.
Brasil e Europa são mais eficazes em conter a extrema direita
De todo modo, é justamente a presença de Trump na Casa Branca que ilumina os dilemas comuns enfrentados por Brasil e França. Por ora, ambos lidam com o fortalecimento da extrema direita nacional de forma mais eficaz do que os Estados Unidos. Para surpresa de alguns, instituições brasileiras e europeias têm conseguido estabelecer certos limites que, no caso americano, falharam em conter Trump – mesmo após suas condenações – e que o agora reeleito presidente trabalha ativamente para desmontar.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal manteve o curso de responsabilização por crimes contra a democracia. Na França, tanto a justiça administrativa quanto a Corte Europeia dos Direitos Humanos – sediada em Estrasburgo – reafirmaram que a popularidade de Le Pen não lhe dá salvo-conduto para violar a lei. Esses episódios não indicam estabilidade definitiva – longe disso –, mas mostram que ainda existem zonas institucionais de autonomia diante de forças autoritárias.
O problema é que essa resistência, por mais importante que seja, é insuficiente. Contra uma ofensiva global da extrema direita – cada vez mais articulada, adaptável e respaldada por potências como os EUA – não basta uma democracia defensiva.
Necessidade de "democracia ofensiva"
É preciso o que venho chamando de democracia ofensiva: uma democracia que vá além da contenção jurídica ou institucional, e que enfrente de modo direto as condições sociais, econômicas e simbólicas que alimentam o extremismo. Uma...
Duration:00:05:07
A Europa, o Azerbaijão e o silêncio sobre Bahruz Samadov
7/7/2025
Bahruz Samadov tem 30 anos, é pesquisador e pacifista – e foi injustamente condenado a 15 anos de prisão no Azerbaijão. Sua história, ignorada por líderes europeus, revela os silêncios convenientes da política internacional e mostra, mais uma vez, como o petróleo costuma pesar mais que a democracia.
Thomás Zicman de Barros, analista político
Hoje eu vou falar sobre o Azerbaijão. Sim, o Azerbaijão: um pequeno país que muitos sequer sabem apontar no mapa e que raramente recebe atenção no noticiário brasileiro. Para explicar o motivo, basta um nome e um sobrenome: Bahruz Samadov.
Ele é um jovem pesquisador, de 30 anos, que acaba de ser injustamente condenado a 15 anos de prisão sob a acusação de alta traição. Sem dúvida, alguém pode se perguntar: “Mas o que isso tem a ver com a Europa?” – que, afinal, costuma ser o assunto dessa coluna.
Esta crônica trata da Europa sob diversos aspectos. Primeiro porque, tecnicamente, o Azerbaijão faz parte da Europa. O país fica no Cáucaso, considerado a fronteira sudeste do continente. É banhado pelo Mar Cáspio, sua capital é a cidade de Baku e faz fronteira com a Geórgia, a Armênia – dois países também frequentemente incluídos no mapa político da Europa –, a Rússia, a Turquia e o Irã. É um país de maioria muçulmana xiita, mas com um governo, em princípio, laico.
Além disso, o Azerbaijão é membro do Conselho da Europa, uma instituição que reúne quase todos os países do continente. E aqui podemos entrar no segundo ponto em que a Europa aparece nessa crônica: as relações entre líderes europeus e o governo azeri. Afinal, há países do continente que não integram o Conselho. A Rússia, por exemplo, foi expulsa após a invasão da Ucrânia. Belarus, por sua vez, jamais foi aceita. Em ambos os casos, o motivo é a cláusula democrática prevista pelo estatuto da organização, que, em princípio, só permite que lá estejam democracias. Então o Azerbaijão é uma democracia pujante? A realidade é mais complicada.
País do ex-bloco soviético
O Azerbaijão fez parte do Império Russo, depois integrou a União Soviética e, no início dos anos 1990, com o colapso do bloco socialista, se tornou um país independente. Seu primeiro presidente foi Heydar Aliyev, um homem forte da KGB nos tempos soviéticos, que depois passou o poder, em 2003, para o seu filho, Ilham Aliyev, que governa o país há 20 anos – e que inclusive colocou a própria esposa no cargo de vice-presidente.
É verdade que o clã Aliyev tem apoio interno. O país cresceu muito nas últimas décadas, enchendo o bolso de alguns, apesar da desigualdade ter também aumentado. Isso dito, o apoio também é mantido pela perseguição a opositores e por um discurso nacionalista inflamado nos últimos três anos, quando o Azerbaijão iniciou uma controversa guerra com a Armênia pela região do Alto Carabaque. Trata-se de um território historicamente disputado – como tantos no antigo espaço soviético, onde fronteiras rígidas tentam separar povos que sempre viveram lado a lado –, e em 2023 o Azerbaijão forçou o êxodo da população armênia da região, num ato que muitos classificam como limpeza étnica.
Mas, apesar de tudo isso, o Azerbaijão continua sendo tratado como um parceiro confiável. Por quê? Em grande parte porque Baku tem petróleo e gás. E petróleo e gás, como sabemos, podem em muitos momentos pesar mais do que compromissos com democracia e direitos humanos.
Foi nesse contexto que Bahruz foi preso. Ele havia voltado ao Azerbaijão em agosto do ano passado para visitar sua avó, Zibeyde Osmanova, octogenária e única integrante viva da família. Era doutorando na Universidade Carlos, em Praga, e nunca se envolveu em qualquer ato de violência. Seu crime? Escrever colunas de opinião em inglês sobre política caucasiana e manter contato com outros ativistas pela paz – inclusive da Armênia. Isso foi o suficiente para ser acusado de traição e condenado a 15 anos de prisão. Na semana da condenação, ele tentou tirar a própria vida. Um colega de cela o salvou. Hoje, ele foi...
Duration:00:05:01
Entre ameaças e recuos: o estilo Trump nas relações comerciais globais
7/2/2025
Donald Trump voltou a colocar o comércio internacional no centro da sua estratégia geopolítica, reacendendo disputas tarifárias e retomando negociações com alguns dos principais parceiros comerciais dos Estados Unidos. No entanto, sua abordagem, marcada por improvisos, ameaças e recuos, tem produzido mais incertezas do que consensos duradouros.
Thiago de Aragão, analista político
A recente reunião com o primeiro-ministro indiano Narendra Modi, na última sexta-feira (27), ilustra bem esse estilo: avanços pontuais são ofuscados por uma condução errática que dificulta previsibilidade e confiança. Ao mesmo tempo, sua postura frente à China e sua retórica diante da União Europeia indicam que, mais do que construir pontes, Trump ainda aposta em táticas de pressão unilateral como principal moeda de negociação. Uma estratégia que pode ter efeitos imediatos, mas cobra caro no longo prazo.
Nas negociações com a China, Trump conseguiu uma trégua tarifária de 90 dias, evitando aumentos imediatos e abrindo espaço para discussões sobre matérias‑primas estratégicas, como as terras raras, o que, por ora, acalmou os mercados e gerou fôlego político. Ainda assim, sua estratégia de alternar ameaças e recuos, apelidada por investidores de Wall Street de “TACO Trade” (Trump Always Chickens Out), mina a credibilidade: ao impor tarifas altas, recuá-las sob pressão e depois retomá-las, ele gera instabilidade para empresas e consumidores.
Com relação à Índia, Trump deixou claro que energias estão voltadas para um “acordo muito grande”, especialmente após se reunir com Narendra Modi. A Índia, por sua vez, ofereceu eliminar tarifas sobre commodities como amêndoas, pistaches e nozes, além de estender tratamento preferencial a setores estratégicos como energia, automóveis e defesa. Esse avanço mostra coordenação entre os líderes e um comprometimento bilateral.
Porém, os problemas persistem. A mais recente rodada de negociações enfrentou impasses graves: divergências sobre tarifas em autopeças, aço e produtos agrícolas ameaçam bloquear o acordo com prazo até 9 de julho. Além disso, Trump pressiona por cortes profundos de tarifas indianas em soja, milho, automóveis e bebidas, exigindo também redução de barreiras não‑tarifárias, o que os indianos consideram excessivo. Sem a aprovação da TPA (Trade Promotion Authority) pelo Congresso, Trump não tem mandato claro para reduzir tarifas unilateralmente, o que fragiliza sua posição.
Também há fatores internos na Índia: o partido opositor cobra maior transparência, enquanto temores sobre concessões em áreas sensíveis, como segurança fronteiriça relacionada ao Paquistão, criam tensão política.
No caso da União Europeia, Trump adiou sua ameaça de tarifas de até 50% até 9 de julho, mas deixou claro que carros, aço e alumínio estão na mira. A UE, por sua vez, está aberta a negociar, mas ressalta que “all options remain on the table”, ou seja, retaliações de até € 95 bilhões estão preparadas se o acordo não for equilibrado. Internamente, Alemanha pressiona por um acordo rápido para proteger sua indústria automotiva, enquanto a França rejeita termos assimétricos, o que deixa o consenso europeu ainda instável.
No fim das contas, Trump vem tentando ser eficaz ao usar a tensão tarifária como instrumento de negociação: ele pressiona parceiros e usa o tempo a seu favor. Contudo, sua inconsistência (ameaça, recua, ameaça de novo), os termos exigentes e a falta de legitimidade no processo (como no caso da Índia, sem TPA) corroem sua reputação como negociador confiável. Com Modi, houve avanços reais, mas também falhas críticas que podem estacionar o acordo. Já com a UE, o futuro depende de Trump repetir uma tática coercitiva ou partir para um compromisso mais estruturado, antes que o prazo de 9 de julho chegue sem perspectivas claras.
Duration:00:04:49
Quando neutralidade vira cumplicidade: o papel dos países europeus no conflito entre Irã e Israel
6/23/2025
Quando líderes europeus começavam a esboçar críticas à matança em Gaza, o ataque israelense ao Irã os devolveu à chantagem de Netanyahu — à qual continuam a se submeter, não sem cumplicidade.
Thomás Zicman de Barros, analista político*
Já faz dez dias que Israel iniciou sua ofensiva militar no Irã. No sábado (21), Donald Trump anunciou que os Estados Unidos haviam se unido aos esforços israelenses e bombardeado alvos ligados ao programa nuclear iraniano.
Onde, porém, fica a Europa nessa situação? O novo chanceler alemão, Friedrich Merz, declarou que Israel está “fazendo o trabalho sujo” dos países ocidentais ao bombardear o Irã — uma frase que, em sua franqueza, escancarou uma cumplicidade calculada. Ao mesmo tempo, o presidente francês Emmanuel Macron responsabilizou Teerã pela escalada, mesmo diante de ataques israelenses que violaram de forma inequívoca o direito internacional e sabotaram negociações diplomáticas já em curso.
Mesmo sem entrar diretamente no conflito, Reino Unido, França e Alemanha, cada um à sua maneira, reafirmaram o alinhamento com Israel num momento em que, após quase dois anos de genocídio em Gaza, começavam a emergir críticas à brutalidade da campanha militar e ao governo de extrema direita que conduz o país. O ataque ao Irã interrompeu esse movimento — e fez recuar até os mais tímidos sinais de desconforto. Mesmo os esforços subsequentes para um retorno à diplomacia, como a reunião infrutífera entre europeus e iranianos em Genebra na sexta-feira (20), mostraram-se insuficientes para conter a escalada ou mudar o tom público das potências europeias. Ao contrário, mesmo após a entrada dos americanos na ofensiva contra o Irã, a primeira reação de Kaja Kallas, chefe da diplomacia europeia, foi de condenar Teerã.
Essa postura escancara a seletividade na aplicação do direito internacional — para não dizer seu caráter farsesco. O que é intolerável em alguns casos é relativizado em outros. O que é chamado de crime, noutros contextos, vira legítima defesa.
Apoio europeu a Israel responde a razões históricas e estratégicas
O apoio europeu a Israel não se dá apenas por inércia diplomática: responde a razões históricas e estratégicas. A Alemanha invoca um “imperativo moral” de apoio incondicional a Israel desde o pós-guerra — mas esse imperativo, longe de promover responsabilidade ética, tem frequentemente servido para silenciar críticas legítimas, com censura e perseguição a manifestações contrárias à ofensiva israelense.
França e Reino Unido, embora menos marcados por esse passado, seguem tentando preservar sua influência num cenário de instabilidade regional crescente. A contenção do regime iraniano — percebido como agente central de desestabilização no Oriente Médio — serve como justificativa conveniente para manter o apoio a Israel, mesmo diante de um ataque preventivo sem base legal que, este sim, elevou o risco de uma escalada regional. Ao se repetir apesar de transgressões reiteradas, esse apoio fragiliza a credibilidade europeia e expõe o uso seletivo das normas que ela mesma reivindica como universais.
Para entender essa lógica de cumplicidade, é preciso enxergar os múltiplos reféns que o governo Netanyahu produz — por diferentes meios e em diferentes planos. Sim, há os reféns reais ainda mantidos pelo Hamas, cuja libertação Netanyahu encena buscar. Mas há também outros tipos de reféns, dentro e fora de Israel.
Identidade judaica refém de Netanyahu
O primeiro deles é a própria identidade judaica. Há décadas, Netanyahu tenta fundir seus governos ao Estado, e o Estado à identidade judaica — como se fossem uma só coisa. A crítica ao seu governo vira crítica a Israel; a crítica a Israel, antissionismo; o antissionismo, antissemitismo — quando não puro negacionismo do Holocausto.
Essa cadeia de equivalências é falsa, mas altamente eficaz. Ela silencia vozes dissidentes, inclusive judaicas. E consolida, tanto à esquerda quanto à direita, a ideia de uma judaicidade à imagem e semelhança da base...
Duration:00:04:19
Trump adota "labirinto estratégico" na guerra entre Israel e Irã
6/16/2025
Na tarde de 15 de junho de 2025, Israel e Irã trocaram intensas ofensivas: Teerã disparou mísseis e drones sobre cidades israelenses, atingindo áreas civis em Tamra, Bat Yam, Tel Aviv, Jerusalém e Rehovot, e deixando dezenas de mortos e muitos feridos. Do lado iraniano, o número de vítimas já ultrapassa 400, com centenas de feridos desde o início da Operação Rising Lion.
Thiago de Aragão, analista político
Diante desse clima de guerra que avança para o terceiro dia, Donald Trump assumiu o centro do palco internacional. O chefe da Casa Branca confirmou que sabia dos ataques israelenses, salientando que foi mantido informado, mas reiterou com firmeza que “os EUA não participaram diretamente” da ofensiva. Mais do que isso, vetou uma possível tentativa de assassinato do aiatolá Khamenei por Israel alegando que, até aquele momento, nenhum americano havia sido morto, e que um ataque tão extremo seria “escalada demais”.
Mas a retórica de Trump permanece poderosa. O presidente norte-americano chamou as ofensivas de “excelentes”, e advertiu a República Islâmica que “poderemos acabar esse conflito sangrento” se os EUA ou seus cidadãos forem alvos. Em outra declaração, relembrou seu histórico de negociações, afirmando que Israel e Irã “logo farão um acordo”, num eco ao processo entre Índia e Paquistão.
Não surpreende que seus aliados no Congresso estejam divididos. O líder republicano do Senado, John Thune, pediu respostas militares em caso de ataque a americanos. Em plena “Fox News Sunday”, ele afirmou que os EUA lançariam “toda sua força” se Teerã ousasse visar a América. Já o senador Rand Paul condenou qualquer intervenção, dizendo que “não é papel dos EUA entrar nessa guerra”.
Essa tensão dentro do Partido Republicano é visível: parte do grupo defende apoio sem restrições a Israel, combinando retórica beligerante e reforço militar, enquanto a ala “America First”, alertada por Tucker Carlson, Marjorie Taylor Greene e Rand Paul, pressiona para que Trump não arraste os EUA para um conflito prolongado.
E Trump? Ele segue em seu próprio labirinto estratégico. Retomou a campanha de “máxima pressão” sobre o Irã, com sanções fortes e envio de defesas antiaéreas à região. Tudo isso sem autorizar tropas terrestres nem ataques diretos. Pivô dessa atuação, vetou o assassinato de Khamenei, mas encorajou os israelenses a manter elevados ataques contra instalações nucleares e militares iranianas — ao mesmo tempo que sinalizou abertura a negociações indiretas.
A pressão interna é intensa: Trump precisa manter seus apoiadores MAGA (Make America Great Again) satisfeitos, sem abrir mão de parecer firme em defesa de Israel. E isso enquanto a economia interna pode ser afetada por choques nos preços do petróleo, típicos de conflitos no Oriente Médio.
As próximas 48 horas serão decisivas. Caso o Irã ataque bases ou cidadãos americanos, Trump já deixou claro que o país responderá com força total. Por outro lado, se persistir a escalada apenas entre Israel e Irã, ele aposta na desescalada diplomática — talvez no G7 — para evitar que os EUA sejam tragados num confronto maior.
Mas o jogo é arriscado. Um míssil errado ou um ataque a interesses americanos pode jogar o país numa rota de guerra direta, exatamente o cenário que a ala isolacionista teme. E Trump, com sua combinação de bravata, veto calculado e diplomacia relâmpago, está novamente no comando de um equilíbrio frágil, um fino limite entre contenção e confronto.
Duration:00:04:47
Como a esquerda britânica pavimenta o caminho da extrema direita
6/9/2025
A extrema direita não cresce sozinha - ela é também normalizada. O Partido Trabalhista britânico, sob Keir Starmer, parece acreditar que pode conter esse avanço adotando seu vocabulário e sua visão de senso comum — mas, ao fazer isso, só acelera o que diz combater.
O primeiro-ministro britânico Keir Starmer gosta de dizer que está do lado do “senso comum”. A frase parece inofensiva, mas revela muito sobre a estratégia atual do Partido Trabalhista — uma estratégia que aposta que, para conquistar votos, basta se aproximar do discurso da extrema direita, como se o povo já pensasse como ela. Mas o senso comum não está dado de antemão: ele é sempre construído. E ao presumir que esse senso comum é contra a imigração, contra ações afirmativas, contra o Estado social, o Labour não disputa ideias — apenas cede terreno.
Quando Starmer venceu as eleições no ano passado, muitos celebraram o fim do desgaste acumulado de sucessivos governos conservadores. Mas desde o início, era possível perceber as limitações da cúpula trabalhista, que passara os anos anteriores removendo qualquer vestígio da agenda progressista do antigo líder Jeremy Corbyn e expurgando dissidentes à esquerda. Esse gesto, apresentado como sinal de responsabilidade, já era um prenúncio do que viria: concessões sistemáticas à retórica da extrema direita.
Essa naturalização do discurso adversário é o que se chama de “normalização”. Ela ocorre, primeiro, quando a própria extrema direita tenta parecer respeitável — como se soubesse “comer com talheres”, suavizando o tom e se apresentando como porta-voz da “maioria silenciosa”. Mas o passo mais decisivo se dá quando partidos tradicionais aceitam que a extrema direita representa o tal “senso comum” — e, a partir disso, adotam suas ideias, seu vocabulário e suas prioridades. Assim, acabam legitimando esse discurso. E isso não é exclusividade da direita.
Se os conservadores britânicos flertaram abertamente com o extremismo sob Boris Johnson, Liz Truss e Rishi Sunak — que fez da luta contra a imigração sua principal bandeira —, agora é o Partido Trabalhista que parece decidido a seguir o mesmo caminho. Em sua tentativa de se reconciliar com um pretenso “centro” dito “moderado”, o governo liderado por Keir Starmer tem mantido cortes em programas sociais, retrocedido em políticas de inclusão — como as ações afirmativas, tachadas de “woke” — e endurecido o discurso contra a imigração.
Como se não bastasse, Starmer elogiou publicamente a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni — cuja trajetória vem diretamente da tradição neofascista —, apontando sua política anti-imigração como exemplo para a Europa. Em maio, afirmou que a Grã-Bretanha corria o risco de se tornar “uma ilha de estranhos”, ecoando, talvez de forma involuntária, o célebre discurso de Enoch Powell, um dos fundadores do racismo político moderno no Reino Unido.
Essa guinada busca reconquistar os votos populares que teriam migrado para partidos de extrema direita como o Reform UK, de Nigel Farage. Mas essa aposta repousa sobre uma série de equívocos. O primeiro é uma caricatura paternalista da classe trabalhadora, tratada, ainda que implicitamente, como inerentemente branca e reacionária — o que os dados não confirmam: os trabalhadores britânicos são diversos, tanto em origem quanto em posicionamento político.
Discurso linha dura
Além disso, embora a esquerda tenha perdido votos em vários países da Europa, isso se deve, em grande parte, a um aumento da abstenção — e não a uma migração direta para partidos reacionários. O segundo equívoco é a crença de que eleitores atraídos pela retórica da extrema direita passarão a votar na esquerda, desde que ela adote um discurso linha-dura. A história e os dados mostram o contrário: nesses casos, o eleitorado tende a preferir o original à cópia.
Enquanto isso, o Reform UK avança. Pesquisas recentes mostram o movimento de Farage empatado — ou mesmo à frente — dos conservadores, atualmente em colapso político e rendidos...
Duration:00:04:57
Eventuais sanções de Trump contra o ministro Alexandre de Moraes teriam impacto limitado
6/2/2025
Em fevereiro de 2025, a Trump Media & Technology Group e a plataforma Rumble Inc. ingressaram com uma ação judicial na Corte Distrital dos Estados Unidos para o Distrito Médio da Flórida contra o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil, Alexandre de Moraes.
Thiago de Aragão, analista político
A alegação central era de que as ordens emitidas por Moraes, que determinavam a suspensão de contas na plataforma Rumble, violavam a Primeira Emenda da Constituição americana, que protege a liberdade de expressão. As empresas buscavam uma declaração de que tais ordens eram inexequíveis nos Estados Unidos.
A ação foi rejeitada pela corte americana com base na falta de jurisdição e na ausência de notificação adequada, conforme exigido pela Lei de Imunidades Soberanas Estrangeiras (FSIA). Segundo a FSIA, Estados estrangeiros e seus representantes gozam de imunidade de jurisdição nos tribunais dos EUA, salvo exceções específicas, como atividades comerciais ou violações de direitos humanos.
Além disso, o Departamento de Justiça dos EUA comunicou ao ministro Moraes que suas ordens não eram executáveis em território americano, ressaltando que qualquer tentativa de impor decisões judiciais estrangeiras no país deve seguir os procedimentos legais internacionais apropriados.
Tensão entre Brasil e EUA
A situação gerou tensões diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos. O governo brasileiro, por meio do Ministério das Relações Exteriores, expressou preocupação com a distorção das decisões judiciais brasileiras e reafirmou a soberania nacional.
Paralelamente, o secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, indicou que sanções contra Moraes estavam sob consideração, com base na Lei Magnitsky, que permite sanções a indivíduos estrangeiros envolvidos em corrupção ou violações de direitos humanos.
A recente iniciativa do governo Trump de considerar sanções contra o ministro Alexandre de Moraes, sob a alegação de censura a plataformas digitais americanas, representa um marco delicado nas relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos.
Essa medida, impulsionada por pressões de aliados de Jair Bolsonaro, como seu filho Eduardo Bolsonaro, e por figuras influentes como Elon Musk, sinaliza uma tentativa de intervenção direta em assuntos internos do Brasil, especialmente no que tange à atuação do Supremo Tribunal Federal em defesa da ordem democrática.
A possibilidade de sanções, incluindo restrições de visto e congelamento de bens, conforme previsto na Lei Magnitsky, não apenas desafia a soberania brasileira, mas também ameaça desestabilizar uma parceria histórica entre as duas maiores economias do Hemisfério Ocidental.
Especialistas alertam que tal ação pode desencadear uma crise diplomática sem precedentes, com o Brasil buscando apoio em outras esferas internacionais e reavaliando suas alianças estratégicas.
Recursos significativos
Embora a retórica do governo Trump sugira uma postura firme contra o ministro Alexandre de Moraes, na prática, essa questão não figura entre as prioridades estratégicas da administração. Com desafios mais prementes, como as tensões comerciais com a China e a situação na Ucrânia, é improvável que o governo dedique recursos significativos para impor sanções a um juiz estrangeiro.
Além disso, eventuais sanções, como restrições de visto ou bloqueio de ativos nos EUA, teriam impacto limitado na atuação de Moraes, que concentra suas atividades no Brasil e não depende de ativos ou viagens aos Estados Unidos.
Portanto, embora a ameaça de sanções possa gerar repercussões políticas e midiáticas, seus efeitos práticos sobre o ministro e sobre as relações bilaterais tendem a ser mais simbólicos do que substanciais.
Este caso destaca os desafios legais e diplomáticos em um mundo interconectado, onde ações de autoridades nacionais podem ter repercussões globais. A tentativa de aplicar princípios constitucionais americanos a decisões judiciais brasileiras evidencia as complexidades de conciliar diferentes sistemas...
Duration:00:04:21
Islamofobia à francesa: racismo sistêmico se traveste de 'neutralidade' para excluir muçulmanos
5/27/2025
Um relatório oficial sem provas reativou, na França, a figura do muçulmano como "inimigo interno". A islamofobia, longe de ser um desvio, tornou-se linguagem institucional — e disfarça, sob a ideia de laicidade, um racismo sistêmico.
Thomás Zicman de Barros, analista político
Na França de hoje, o racismo nem sempre aparece de forma explícita. Em vez de falar diretamente sobre raça, ele se disfarça de preocupação com a religião — quase sempre, com o Islã.
A figura do muçulmano acaba reunindo, num só alvo, preconceitos franceses ligados tanto à cor da pele, quanto à fé. No Brasil, os debates sobre racismo e sobre a presença da religião na política ganharam força nos últimos anos, mas costumam seguir caminhos separados.
Na França, ao contrário, esses temas se misturam. Em nome de uma suposta neutralidade do Estado — o chamado princípio da laicidade —, a exclusão de certos grupos se torna não só tolerada, mas legitimada.
Essa lógica ficou escancarada mais uma vez na última semana, com a publicação de um relatório oficial do Ministério do Interior francês que denuncia — sem apresentar nenhuma evidência concreta — uma suposta tentativa de infiltração da Irmandade Muçulmana nas instituições republicanas.
A Irmandade é um movimento islâmico fundado no Egito, que defende a organização da sociedade com base em princípios religiosos. Já foi uma força política relevante em alguns países, mas hoje está em franca decadência. Como em qualquer sociedade democrática, grupos fanatizados — de qualquer orientação ideológica ou religiosa — devem ser acompanhados com atenção dentro dos territórios.
“Ameaça” interna
No entanto, os dados disponíveis indicam que apenas uma parcela ínfima dos muçulmanos na França se identifica com posições dessa natureza. Mesmo assim, o relatório francês, intitulado “A Irmandade Muçulmana e o islamismo político na França”, mistura suspeitas vagas e insinuações, sugerindo que qualquer cidadão muçulmano poderia ser um agente infiltrado do fanatismo religioso.
A rigor, não deveria passar de um panfleto com teorias conspiratórias típicas da extrema direita. Apesar disso, o relatório foi recebido com estardalhaço pela imprensa francesa, pelo próprio governo, e pelo presidente Emmanuel Macron, que decidiu convocar o Conselho de Defesa — uma instância reservada normalmente a discutir guerras e ameaças externas — para tratar da “ameaça” interna.
Racismo instrumentalizado
Chama atenção o fato de que, hoje em dia, e cada vez mais, o muçulmano ocupa na França o papel que cabia ao judeu há 100, 120 anos. São grupos discriminados, marginalizados, mas aos quais se atribui superpoderes. O "inimigo interno", insidioso, invisível.
O muçulmano hoje, como o judeu no passado, estaria por todos os lados, e controlaria — ou tentaria controlar — o país na surdina.
É importante lembrar que a islamofobia não é exclusividade da extrema direita. Ela se faz presente por todo o espectro político francês — na direita, no centro e até mesmo em parte da esquerda dita “republicana” — tornando-se compatível com os racistas históricos e até ajudando a normalizá-los.
E não se trata aqui de uma mera tática eleitoral para conquistar um eleitorado racista ou para desviar o foco de problemas reais — embora também seja tudo isso —, mas do reflexo de uma hegemonia cultural profundamente enraizada. A islamofobia impregnou alguns dos princípios fundamentais da cultura política francesa.
Leia tambémPichações islamofóbicas em centro muçulmano chocam a França dois dias antes do Ramadã
Ela colonizou noções centrais do republicanismo francês, a começar por seu pilar fundante: a laicidade, o princípio da separação entre Estado e religião. A forma como essas ideias são entendidas hoje reproduz em seu cerne a islamofobia. Por isso, o racismo que ela perpetua é sistêmico.
Vale lembrar como o princípio da laicidade se instalou como fundamento da república na França. Faz exatos 120 anos, na esteira do caso que criou o antissemitismo moderno: o chamado...
Duration:00:04:46