Poesia Em Gotas-logo

Poesia Em Gotas

Books & Literature

Marcella Saraceni é poeta, fotógrafa, redatora e entusiasta dos assuntos ligados a sexualidade, política e arte. Nasceu em uma família de pais homossexuais e desde nova percebeu que não cabia nas caixas sociais pré-moldadas. Para subverter a ordem e aprender a conviver com as perdas em sua vida, escreveu, encontrando na poesia uma fonte de força e coragem para expressar seu sentir. Na experimentação do corpo e das palavras, segue buscando novos caminhos e relações mais amorosas consigo e com o mundo. ____ link para compra de seu primeiro livro: https://editoraurutau.com/titulo/poesias-famintas

Location:

United States

Description:

Marcella Saraceni é poeta, fotógrafa, redatora e entusiasta dos assuntos ligados a sexualidade, política e arte. Nasceu em uma família de pais homossexuais e desde nova percebeu que não cabia nas caixas sociais pré-moldadas. Para subverter a ordem e aprender a conviver com as perdas em sua vida, escreveu, encontrando na poesia uma fonte de força e coragem para expressar seu sentir. Na experimentação do corpo e das palavras, segue buscando novos caminhos e relações mais amorosas consigo e com o mundo. ____ link para compra de seu primeiro livro: https://editoraurutau.com/titulo/poesias-famintas

Language:

Portuguese


Episodes
Ask host to enable sharing for playback control

Quando estou triste - Marcella Saraceni

2/27/2024
quando estou triste ando na rua achando que todos sabem uma senhora me encarou por mais de dois minutos e eu tive certeza: ela está vendo minha dor na farmácia perguntaram se eu não queria levar um lenço umidecido que estava na promoção assim, do nada vou caminhando pelas ruas carregando minha tristeza como um cabelo que está preso, pesando minha cabeça não o amarro ou faço coques levo ele do jeito que está quando acordo e até sou capaz de sorrir uma, duas, três vezes... eu não esqueço da alegria e posso vê-la está ao alcance dos meus olhos mas não dos meus pés se vejo um banco na praça tenho vontade de sentar e questionar minha vida toda se me pedem desculpas respondo: “desculpa eu” se quase piso no rabo de um gato sou capaz de chorar infinitas banalidades me fazem chorar quando estou triste e para fazer compras no mercado, eu talvez use um óculos escuro só uso óculos escuro quando estou triste no sol não. no sol geralmente estou feliz copacabana. ruas lotadas de gente. passo chorando entre elas com um fone de ouvido escutando algo que não combina em nada com aquele cenário mas esse movimento todo me interessa andar chorando entre os pedestres que correm que não me enxergam é como um pequeno rio brotando no chão do asfalto quente é uma bandeira que diz (com som de sinere ao fundo) “eu me permito sentir” alguém está vindo em minha direção é um dos rapazes de roupas azuis do exército da salvação quase acho que vieram para me salvar “que pena” respondo à ele queria ajudar. mas hoje não, hoje estou triste.

Duration:00:02:32

Ask host to enable sharing for playback control

Eu durmo comigo - Angélica Freitas

1/18/2024
eu durmo comigo/ de bruços deitada eu durmo comigo/ virada pra direita eu durmo comigo/ eu durmo comigo abraçada comigo/ não há noite tão longa em que não durma comigo/ como um trovador medieval agarrado ao alaúde eu durmo comigo/ eu durmo comigo debaixo da noite estrelada/ eu durmo comigo enquanto os outros fazem aniversário/ eu durmo comigo ás vezes de óculos/ e mesmo no escuro sei que estou dormindo comigo/ e quem quiser dormir comigo vai ter que dormir do lado

Duration:00:01:03

Ask host to enable sharing for playback control

Minha cueca caiu do varal no meio da rua - Mila Teixeira

1/15/2024
compro cuecas nas americanas apenas quando estão na promoção não pago mais de doze reais por unidade uso aquelas que parecem shorts qual é o nome comecei a usar pra que não vissem minha bunda por baixo das saias e vestidos aos poucos substituí as calcinhas tão desconfortáveis que sempre entram no meio da bunda as mais baratas então são de poliéster puro já minhas cuecas são de algodão macias lavei as cuecas e ao colocar no varal acabei deixando uma cair na rua desci pra buscar vi um senhor estava botando ela no bolso ele não entendeu quando pedi de volta e disse que era minha por estar de bom humor contei: só uso calcinhas em começos de namoro e olhe lá ele não me devolveu atravessou a rua balançando minha cueca agora uso um varal dentro de casa estou farta de mal-en

Duration:00:01:10

Ask host to enable sharing for playback control

Recortes de “Para viver sem medo” - Eduardo Galeano

12/19/2023
(…) Dizem que o mundo é feito de átomos. Está bem. “O mundo não é feito de átomos, o mundo é feito de histórias”, disse uma amiga. Eu acredito que sim, o mundo deve ser feito de histórias, porque são as histórias que a gente conta e escuta, recria e multiplica. São as histórias que permitem transformar o passado em presente, e também permitem transformar o distante em próximo. O que está distante em algo próximo, possível e visível. O mundo é isso, revelou: um monte de gente, um mar de foguinhos. Não existem dois fogos iguais. Cada pessoa brilha com luz própria, entre todas as outras. Existem fogos grandes e fogos pequenos, fogos de todas as cores. Existem pessoas de fogo sereno, que nem ficam sabendo do vento, e há pessoas de fogo louco, que enche e arde faíscas. Alguns fogos, fogos bobos, não iluminam nem queimam. Mas outros… outros ardem a vida com tanta vontade, que não pode olhá-los sem pestanejar. Quem se aproxima, se incendeia.

Duration:00:01:27

Ask host to enable sharing for playback control

Fera mansa - Marcella Saraceni

12/11/2023
tinha uma bandeira na entrada da sua rua ela sinalizava que ali era um território perigoso nunca tive medo de encontrar um animal selvagem do barco afundar de ser engolida por uma grande onda saí correndo na noite escura pulei o muro da sua casa cheguei no jantar de aniversário do seu avô fundei um partido sem líderes mas com grandes ambições eu queria ir longe, baby muito longe e você queria cuidar da orquídea que crescia dentro de mim gritava saia da floresta vamos correr o mundo e o felino, selvagem, quieto só me olhava de longe

Duration:00:01:04

Ask host to enable sharing for playback control

Estudo da tração na sutileza da diferença - Maria Isabel Iorio

12/7/2023
1. uma mulher molhada sobre uma mulher molhada é audível, sólido 2. uma mulher sobre outra mulher não é preliminar é pré histórico 3. uma mulher para amar uma mulher é preciso comer com as mãos 4. uma mulher para amar uma mulher é preciso cortar as unhas 5. colar a trajetória no epicentro: uma mulher que ama uma mulher aprende a lamber as coisas por den- tro

Duration:00:00:45

Ask host to enable sharing for playback control

Ser rebelde - Doris Lessing

12/7/2023
Ser rebelde leva uma vida inteira, apagando os privilégios da pele, inscrevendo-se na solidão da discórdia, deixando para trás os usurpadores... Não há recompensa para uma rebelde além de poder regar as flores na hora certa, sair para alimentar os pássaros numa manhã em que o capital devora, sorrir com os dentes desgastados diante da desgraça do café da manhã, ficar sem teto na casa em que ninguém sonha. As rebeldes sabem do que são feitos os prêmios, rejeitam as migalhas lançadas pela mão do opressor. Uma rebelde tem a vida como única recompensa, porque ninguém se apropria dela, nela ninguém a usurpa, porque é o único terreno próprio de cada canto onde dorme. Sua rebelião sempre consegue encobrir o desânimo do progresso e se uma rebelde sente alegria na solidão, ela conquistou o mundo.

Duration:00:01:12

Ask host to enable sharing for playback control

Aos pés da noite - Marcella Saraceni

11/6/2023
Produção musical, Arranjo e Saxofones: Dudu Rezende Produção musical e Mixagem: Beno Ibeas Masterização: Guilherme Lopes ___________________________________ após 30 anos caminhando ajoelhei aos pés da noite e disse cansei ali entreguei u m a por u m a todas as armas que empunhei contra mim de repente meu corpo era tomado por uma explosão de energia que nunca havia experimentado então não era um movimento externo era interno mesmo pensei naquele lugar fiz uma nascente onde correu rio por dias e dias ininterruptamente a noite observava tudo olhando sem espanto como se ja esperasse minha chegada como se dissesse você demorou o importante é que vim repetia internamente tentando manter a faísca acesa eu não podia esquecer porque fui até lá eu precisava sustentar todo o caos aos pés da noite uma montanha se levantava eram meus pedaços quando vão acabar? me perguntava meu grande desejo era que aquela explosão viesse com tudo que eu fosse vulcão por fora não aguentava mais erupçar por dentro eu olhava de frente pra morte e dava um beijo nela terno mas se despedida precisava conhecer a vida já conhecia a morte de muito perto já dormi com ela infinitas vezes precisava abrir espaço na minha cama pra ser visitada pelo sonho daqueles que você acredita que podem nascer enfim depois de semanas onde só se viu a escuridão o rio secou o sol apareceu sem vergonha nada mais poderia carregar vergonha encarei a luz e não me protegi deixei meus olhos arderem em brasa firme eu ainda não explodia mas sentia cada parte de mim aquecer borbulhar havia vida ali e eu sentia que ela era pra mim e

Duration:00:03:30

Ask host to enable sharing for playback control

Aviso da lua que menstrua - Elisa Lucinda

8/29/2022
Moço, cuidado com ela! Há que se ter cautela com esta gente que menstrua... Imagine uma cachoeira às avessas: Cada ato que faz, o corpo confessa. Cuidado, moço Às vezes parece erva, parece hera Cuidado com essa gente que gera Essa gente que se metamorfoseia Metade legível, metade sereia. Barriga cresce, explode humanidades E ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar Mas é outro lugar, aí é que está: Cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita.. Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente Que vai cair no mesmo planeta panela. Cuidado com cada letra que manda pra ela! Tá acostumada a viver por dentro, Transforma fato em elemento A tudo refoga, ferve, frita Ainda sangra tudo no próximo mês. Cuidado moço, quando cê pensa que escapou É que chegou a sua vez! Porque sou muito sua amiga É que tô falando na "vera" Conheço cada uma, além de ser uma delas. Você que saiu da fresta dela Delicada força quando voltar a ela. Não vá sem ser convidado Ou sem os devidos cortejos.. Às vezes pela ponte de um beijo Já se alcança a "cidade secreta" A atlântida perdida. Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela. Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas Cai na condição de ser displicente Diante da própria serpente Ela é uma cobra de avental Não despreze a meditação doméstica É da poeira do cotidiano Que a mulher extrai filosofando Cozinhando, costurando e você chega com mão no bolso Julgando a arte do almoço: eca!... Você que não sabe onde está sua cueca? Ah, meu cão desejado Tão preocupado em rosnar, ladrar e latir Então esquece de morder devagar Esquece de saber curtir, dividir. E aí quando quer agredir Chama de vaca e galinha. São duas dignas vizinhas do mundo daqui! O que você tem pra falar de vaca? O que você tem eu vou dizer e não se queixe: Vaca é sua mãe. de leite. Vaca e galinha... Ora, não ofende. enaltece, elogia: Comparando rainha com rainha Óvulo, ovo e leite Pensando que está agredindo Que tá falando palavrão imundo. Tá, não, homem. Tá citando o princípio do mundo!
Ask host to enable sharing for playback control

Das vantagens de ser bobo - Clarice Lispector

3/24/2022
O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: “Estou fazendo. Estou pensando.” Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia. O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski. Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu. Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: “Até tu, Brutus?” Bobo não reclama. Em compensação, como exclama! Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz. O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem. Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.
Ask host to enable sharing for playback control

Costura: poema com “C” - Marcella Saraceni

11/7/2021
Chega! Cansei Cá chegamos Caramba, como conseguimos? Cada coisa... Corações costurados, Conexões cortadas, Consciência? Coitada Ceifada como capim! Começamos como coelhos Café cama chamego Café cama chamego Café cama chamego Caminhamos... Crescemos... Criamos crianças cachorros calos Compramos carro casa cobertores Casamos Como cúmplices compartilhamos Canções calor choro cachaça Cambaleando Caímos Como continuar? Cantando Chico César Como costumávamos
Ask host to enable sharing for playback control

Matilde Campilho - Fevereiro

10/8/2021
Escute só, isto é muito sério. Anda, escuta que isso é sério! O mundo está tremendamente esquisito. Há dez anos atrás o Leon me disse que existe uma rachadura em tudo e que é assim que a luz entra, não sei se entendi. Você percebe alguma coisa da mistura entre falhas e iluminação? Aliás, me diga, você percebe alguma coisa de carpintaria? Você sabe por que meteram um boi naquele estábulo ao invés de um pequeno rinoceronte? Deve ter tido alguma coisa a ver com a geografia. Ou com os felizmente insolussionáveis mistérios que só podem vir do misticismo asiático. Um boi é um bicho tão… inexplicável. Ainda bem. O amor é um animal tão mutante, com tantas divisões possíveis. Lembra daqueles termômetros que usávamos na boca quando éramos pequenininhos? Lembra da queda deles no chão? Então, acho que o amor quando aparece é em tudo semelhante à forma física do mercúrio no mundo. Quando o vidro do termômetro se quebra, o elemento químico se espalha e então ele fica se dividindo pelos salões de todas as festas. Mercúrio se multiplicando. Acho que deve ser isso uma das cinco mil explicações possíveis para o amor. Ah é! Eu gosto de você. A luz entrou torta por nós a dentro, mas, olha, eu gosto de você! A luz do verão passado quebrou o vidro da melancolia e agora ela fica se expandindo pelas ruas todas. Desde aquele outro lado do Sol até esse tremendo agora. Hoje ainda faz bastante frio. As cinzas ainda não aterraram sobre as cabeças disfarçadas, tem gente batucando suor e cerveja pelas ruas de nossa cidade sul. Na cidade norte, há ondas de sete metros tentando acertar no terceiro olho dos rapazinhos disfarçados de cowboys. [suspiro] O mestre ainda não veio decretar o começo da abstenção e, olha, a luz ainda está conosco. Sim, o mundo está absurdamente esquisito. Já ninguém confia nas imposições dos prefeitos, a esta hora na terra é um tanto carnaval, um tanto conspiração, um tanto medo. Metade fé, metade folia, metade desespero. E, provavelmente, a esta hora, uma metade do mundo está vencendo e a outra metade dormindo, há ainda outra metade limpando as armas, outra limpando o pó das flores. Mas, por causa do que me ensinou o místico, eu acredito que exista, agora, alguém profundamente acordado. Alguém que esteja vivendo entre o intervalo tênue entre o sonho e a agilidade. Suponho que ele saiba perfeitamente que este começo de século será nosso batismo do voô para nossa persistência no amor.João molhou a testa de Manuel. Os gritos das ruas molham as testas de nossos corações. De que lado você está, eu não me importo! De que garfo você come, de que copo você bebe, que posto certo você escolhe, qual é seu orixá, seu partido, sua altura, de qual de suas cicatrizes cuida, que pássaro você prefere, quem é seu pai, qual é seu samba, Pinot noir ou Chardonay, que protetor você usa, qual é sua pele, seu perfume, qual político, quantos amores você sonha, em que Fernando, em que Ofélia, em que cinema, em que bandeira, em que cabelo você mora, qual dos túneis de Copacabana. Rezo para seus santos quando atravessar. É… é impossível viver no país de Deus. Isso eu te dou de barato. Mas, atravessar o gramado de Deus em bicicleta, isso não é impossível, não. Escuta, isso é sério! Andamos crescendo juntos, distraidamente. As árvores crescem conosco. Nossa pele se estende, nosso entendimento, teso, também. O século cresce conosco. O amor pelas ventas da cara do mundo, também. Quanto a um pra um entre nós dois, isso logo se vê. Não sei nada sobre a paixão, suspeito que você também não. Mas, começo a entender que o compasso da fé está mudando a passos largos. Dois pra lá e dois pra cá. Portanto, escute. Isto é muito serio! Isto é uma proposta aos trinta anos. Agora que o mercúrio assumiu sua posição certa, vem comigo achar o meu trono mágico entre a folhagem. E, no caminho até lá, vem dançar comigo, vem!
Ask host to enable sharing for playback control

De cabeça- Ocean Vuong

8/26/2021
Você não sabe? O amor de mãe ignora o amor-próprio como o fogo ignora os gritos sonoros daquilo que queima. Meu filho, mesmo amanhã você vai ter o hoje. Você não sabe? Alguns homens tocam seios como tocassem o topo de crânios. Homens que ultrapassam montanhas levando seus sonhos, seus mortos nas costas. Mas só uma mãe pode andar com o peso de um segundo coração que bate. Garoto tolo. Talvez você se perca em todo livro mas jamais vai se esquecer de si como deus esquece as próprias mãos. Quando alguém te perguntar de onde você é, responda sempre que o teu nome virou carne na boca banguela de uma mulher da guerra. Que você não nasceu que você rastejou, de cabeça — rumo à fome dos cães. Meu filho, responda que o corpo é uma lâmina que se afia cortando.
Ask host to enable sharing for playback control

Não há vagas - Ferreira Gullar

8/19/2021
O preço do feijão não cabe no poema. O preço do arroz não cabe no poema. Não cabem no poema o gás a luz o telefone a sonegação do leite da carne do açúcar do pão O funcionário público não cabe no poema com seu salário de fome sua vida fechada em arquivos. Como não cabe no poema o operário que esmerila seu dia de aço e carvão nas oficinas escuras - porque o poema, senhores, está fechado: “não há vagas” Só cabe no poema o homem sem estômago a mulher de nuvens a fruta sem preço O poema, senhores, não fede nem cheira
Ask host to enable sharing for playback control

Otto Rene Castillo - Intelectuais Apolíticos

7/15/2021
Um dia, os intelectuais apolíticos do meu país serão interrogados pelo homem simples do nosso povo Serão perguntados sobre o que fizeram quando a pátria se apagava lentamente, como uma fogueira frágil, pequena e só. Não serão interrogados sobre os seus trajes, nem acerca das suas longas siestas após o almoço, tão pouco sobre os seus estéreis combates com o nada, nem sobre sua ontológica maneira de chegar às moedas. Ninguém os interrogará acerca da mitologia grega, nem sobre o asco que sentiram de si, quando alguém, no seu fundo, dispunha-se a morrer covardemente. Ninguém lhes perguntará sobre suas justificações absurdas, crescidas à sombra de uma mentira rotunda. Nesse dia virão os homens simples. Os que nunca couberam nos livros e versos dos intelectuais apolíticos, mas que vinham todos os dias trazer-lhes o leite e o pão, os ovos e as tortilhas, os que costuravam a roupa, os que manejavam os carros, cuidavam dos seus cães e jardins, e para eles trabalhavam, e perguntarão, "Que fizestes quando os pobres sofriam e neles se queimava, gravemente, a ternura e a vida?" Intelectuais apolíticos do meu doce país, nada podereis responder. Um abutre de silêncio vos devorará as entranhas. Vos roerá a alma vossa própria miséria. E calareis, envergonhados de vós próprios.
Ask host to enable sharing for playback control

Receita para lavar palavra suja - Viviane Mose

7/13/2021
Mergulhar a palavra suja em água sanitária. depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia. Algumas palavras quando alvejadas ao sol adquirem consistência de certeza. Por exemplo a palavra vida. Existem outras, e a palavra amor é uma delas, que são muito encardidas pelo uso, o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra, depois enxaguar em água corrente. São poucas as que resistem a esses cuidados, mas existem aquelas. Dizem que limão e sal tira sujeira difícil, mas nada. Toda tentativa de lavar a piedade foi sempre em vão. Agora nunca vi palavra tão suja como perda. Perda e morte na medida em que são alvejadas soltam um líquido corrosivo, que atende pelo nome de amargura,que é capaz de esvaziar o vigor da língua. O aconselhado nesse caso é mantê-las sempre de molho em um amaciante de boa qualidade. Agora, se o que você quer é somente aliviar as palavras do uso diário, pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar. O perigo neste caso é misturar palavras que mancham no contato umas com as outras. Culpa, por exemplo, a culpa mancha tudo que encontra e deve ser sempre alvejada sozinha. Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo, já que desejo, sendo uma palavra intensa, quase agressiva, pode, o que não é inevitável, esgarçar a força delicada da palavra amizade. Já a palavra força cai bem em qualquer mistura. Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras sob o risco de perderem o sentido. A sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva, produz uma oleosidade que dá vigor aos sons. Muito importante na arte de lavar palavras é saber reconhecer uma palavra limpa. Conviva com a palavra durante alguns dias. Deixe que se misture em seus gestos, que passeie pela expressão dos seus sentidos. À noite, permita que se deite, não a seu lado mas sobre seu corpo. Enquanto você dorme, a palavra, plantada em sua carne, prolifera em toda sua possibilidade. Se puder suportar essa convivência até não mais perceber a presença dela, então você tem uma palavra limpa. Uma palavra LIMPA é uma palavra possível.
Ask host to enable sharing for playback control

Canção de agora - Lila Ripoll

7/7/2021
Ontem meu peito chorava. Hoje, não. Também cansa a desventura. Também o sol gasta o chão. Estava ontem sozinha, tendo a meu lado, sombria, minha própria companhia. Hoje, não. Morreu de tanto morrer a pena que tanto vivia. Morreu de tanto esperar. Eu não. Relógios do tempo andaram marcando o tempo em meu rosto. A vida perdeu seu tempo. Eu não. Também cansa a desventura. Também o sol gasta o chão.
Ask host to enable sharing for playback control

Eu-mulher - Conceição Evaristo

7/7/2021
Uma gota de leite me escorre entre os seios. Uma mancha de sangue me enfeita entre as pernas Meia palavra mordida me foge da boca. Vagos desejos insinuam esperanças. Eu-mulher em rios vermelhos inauguro a vida. Em baixa voz violento os tímpanos do mundo. Antevejo. Antecipo. Antes-vivo Antes – agora – o que há de vir. Eu fêmea-matriz. Eu força-motriz. Eu-mulher abrigo da semente moto-contínuo do mundo.
Ask host to enable sharing for playback control

Quando o crime vem como a chuva cai - Bertold Brecht

6/3/2021
Como alguém que chega com uma carta importante ao guichê depois das horas regulamentares: o guichê já está fechado. Como alguém que quer advertir a cidade de um inundação: mas fala uma outra língua. Não o compreendem. Como um mendigo que pela quinta vez bate a uma porta onde já recebeu esmola quatro vezes: ele tem fome pela quinta vez. Como alguém cujo sangue lhe corre duma ferida e espera pelo médico: o sangue continua a correr. Assim vimos nós e relatamos que em nós se cometem crimes. Quando se relatou pela primeira vez que os nossos amigos era abatidos pouco a pouco, houve um grito de horror. Então foram abatidos cem. Mas quando foram abatidos mil e a matança não tinha fim, espalhou-se o silêncio. Quando o crime vem como a chuva cai, então já ninguém grita: alto! Quando os delitos se amontoam, tornam-se invisíveis. Quando as dores se tornam insuportáveis, já se não ouvem os gritos. Também os gritos caem como a chuva de Verão.
Ask host to enable sharing for playback control

Aiyra ibi abá - Fábio Brazza / com Mariana Assis

4/23/2021
Homem branco chegou aqui E me perguntou: Quanto custa essa terra Só falar que eu te dou Mas eu não entendi Índio não entende Minha terra é minha mãe E a mãe não se vende Eu agradeço a mensagem cálida, mas cara pálida Sua proposta não é válida A vida não é propriedade de quem vence a guerra A terra não pertence ao ser humano O ser humano é que pertence a terra E é ai que você erra, pois não se pode comprar a clareza da agua a pureza do ar Não sou dona de nada, nada disso é meu Tudo isso é um presente que a natureza nos deu Veja bem esse Rio é sagrado pra nós Ele que matou a sede dos nossos avós Ele corre em nós, como o sangue na veia E é da seiva do solo que sai nossa ceia Receio, que ainda assim você não entenda Já que em sua sociedade tudo esta a venda Mas índio se defende e índio não se rende Pois a honra para nós não é uma questão de renda Veja na natureza não há cobiça A gente tira o que precisa, nada se desperdiça Dizem que Índio tem preguiça, mas é que não é normal É o cumulo tamanho acumulo de capital Esse mundo tá doente, perdido Se não posso deixar posse apenas passo a lição do ente querido Não faz sentido, trabalhar a vida inteira Por coisas que cedo ou tarde vão parar numa lixeira Não, eu não entendo a sua maneira de vida Seu progresso não passa de uma manobra suicida Meu povo vive em igualdade e liberdade E você chama a sua sociedade de evoluída? Ultimamente quando ando pela terra Escuto o prenúncio de uma guerra Do homem que mata Do ferro que berra Do grito aflito da mata oculto Pelo ranger da moto serra Senhor, se for tomar essa terra lhe peco o favor Que ensine seus filhos a trata-la com amor Mas se for para manchar E destruir a terra que eu nasci Antes de partir, me enterra aqui Porém saiba que ainda que eu me vá, meu povo viverá Pois somos um pedaço da alma deste lugar E quando a última arvore tombar O homem branco vai perceber Que dinheiro não se pode comer Ai você vera; eu e você somos iguais Temos a mesma alma que as plantas e os animais Da terra viemos e pra ela iremos voltar Mas até lá já será tarde demais