Enterrados no Jardim-logo

Enterrados no Jardim

Arts & Culture Podcasts

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.

Location:

Portugal

Description:

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.

Language:

Portuguese


Episodes
Ask host to enable sharing for playback control

Camões & Taylor Swift. Uma conversa com Hélio Alves

5/31/2024
Quando se fala de poesia são aqueles que desatam a brilhar e acham sempre que é com eles que, ao mesmo tempo, se fazem de desentendidos, que nunca sabem bem o que isso seja, até porque lhes convém poder pôr qualquer arrotito lírico nessa conta pela qual ninguém se responsabiliza nem há quem a pague, e lá vão levando fiado e gozando o prestígio dos que elevaram a canção a um modo de provocar um estremeção na realidade. Mas se até um figurão reputadíssimo como Vitor Aguiar e Silva percebeu como os poemas reiventam a linguagem verbal e como nessa reinvenção lêem e dão a ler de modo inédito o homem e o mundo e transformam o homem e o mundo, não deixa de ser estranho que depois os ditos poetas se mostrem sempre tão titubeantes. Dá a sensação que hoje despencam na poesia, como num palco de consolação, aqueles que se frustraram na sua carreira enquanto artistas pop. Estão fascinados por essa regularidade das formas de ruído espectacular, essa mecânica estridente que vive de repetições, cópias, frases sem grumos, reproduzíveis, que ficam no ouvido desses seres mastigados pelo quotidiano massacrante que se nos impõe. Hoje, o rouxinol tornou-se um intruso, uma espécie de imigrante ilegal no reino da canção. Como nota Pierre Alferi, as condições urbanas geraram distúrbios de tal ordem que o ruído no trânsito obriga os rouxinóis a cantarem tão alto que tecnicamente os seus cantos excedem os limites legais. Mas os poetas não, nunca. Só cantam se for conveniente e no volume que se considerar mais agradável. Já o rouxinol poderá causar verdadeira perturbação e obrigar os vizinhos a abaterem-lhe a árvore. São os rouxinóis, hoje, e não os poetas que correm mais risco de serem expulsos da cidade. O que nenhum poeta quer é ser acusado de perturbar a ordem, as consciências ou, em geral, o conforto dos seus contemporâneos. Se pudesse enchia estádios. Mas não podendo, canta por aí nos convívios entre aqueles que acham que a poesia enobrece os seus sentimentos. “Já quase nada surge sem mais nem menos” (Don DeLillo), tudo tem de ser encomendado, convidado, tocam-se as canções mais pedidas. O poeta mais parece uma jukebox, e não tendo êxitos no seu repertório, fica obrigado a fazer imitações daquilo que passa mais na rádio. Para os nossos dias, um tipo como o Camões, esse génio arruaceiro que fervia em pouca água, apesar do ambiente comemorativo nestes seus 500 anos, seria tido certamente como um ser grotesco, um bárbaro face à fraseologia mortuária que ocupou o lugar da língua portuguesa. Hoje seria necessário evadirmo-nos, com Camões e outros da mesma estirpe, esses seres que se agarravam à vida mais pela capacidade de evocar outras visões e mundos, que vão explorando através dessa espécie de arabescos acústicos tecidos à volta das suas experiências, e que compõem canções infinitamente mais convincente e ardorosas do qualquer desses simulacros com que nos divorciamos dos nossos sentidos. Nestes 500 anos, para apreciar a decomposição e o chavascal que se fez à volta da obra de Camões, pedimos a orientação de um dos nossos mais empenhados e audazes camonistas, Hélio Alves, alguém que se tem batido para revitalizar o estudo desta obra, notando que os supostos pedagogos continuam a ignorá-la, “enquanto repetem o mesmo refrão de sempre sobre a valente e mulherenga criatura”. “A dificuldade em formar o pensamento abstracto nos jovens, isto é, a falta do que devia chamar-se uma escola, deve ter contribuído em muito para não se saber ler”, nota ele. “Seja como for, os poucos críticos ainda dignos desse nome não terão outro remédio, para a nossa saúde, senão voltar, seja por que abordagens e matizes forem, à poesia de Camões”. Este nosso guia frisa ainda como Portugal apostou desde sempre na sua excepcionalidade. “Na vida, na carreira, no génio.” O problema é que na hora de medir e sopesar tudo a tarefa parece ter-se tornado demasiado exigente para os leitores que vamos formando. “Quem louvará Camões que ele não seja?”, questionou Diogo Bernardes logo no...

Duration:03:08:01

Ask host to enable sharing for playback control

As musas obscenas. Uma conversa com Pê Feijó

5/24/2024
Diante deste regime cultural dos que sempre se recomendam (a si mesmos e uns aos outros), dos que em todas as situações encontram forma de capturar-nos apenas para se mostrarem infinitamente virtuosos, desses que, assim, se servem da sua virtude para masturbar os seus vícios (Michaux), somos levados a pensar no que Flaubert respondia quando lhe perguntavam que espécie de glória ambicionava mais: “A de um desmoralizador.” É um problema de inspiração, das matérias e exemplos para os quais nos voltamos, procurando sempre o teor edificante nas nossas manifestações e comportamentos. Todos se querem subversivos, mas não se livram do ranço dos valores de sempre, e rejeitam tudo o que é mais baixo, tudo isso que, por assim ser, “não pode servir em hipótese alguma para macaquear uma autoridade qualquer”. Como refere Bataille, “a matéria baixa é exterior e estranha às aspirações ideais humanas e recusa-se a deixar-se reduzir às grandes máquinas ontológicas que resultam dessas aspirações”. Os elementos degenerados ainda são apenas tolerados e mantidos sob uma apertada vigilância ou condenados à inexpressão. Todas as ficções depravadas circulam como exemplo de um excesso que se vê aproveitado pelos cursos de catequese das artes, como enunciados a serem replicados em série de forma a derrotar qualquer efeito de choque. Hoje a hipocrisia é o preço que todo o vício se vê obrigado a pagar à virtude. Como nota Claudio Magris, as formas de profanação ostensiva, tão gratas a tantas expressões artísticas, revelam-se amiúde cheias de boas intenções, e os escritores que se tomam por iconoclastas celebram o eros frente à repressão, as posturas rebeldes frente ao autoritarismo dogmático, a revolta dos marginais frente aos tutores das hierarquias sociais, e tudo isto não passa de mais outra profissão de moralidade e de bons sentimentos. Quão raros são aqueles que verdadeiramente mostram um interesse sério pelas catástrofes, por essas depressões tumultuosas e crises de angústia. Falamos tanto do inferno, mas, na verdade, muito poucos são aqueles que realmente se atrevem a fazer mais do que molhar os pés nas suas águas. Bataille nutria o maior desprezo por este tipo de artistas, e não poucas vezes exprimiu o ódio diante de um mundo que, até em presença da morte, impunha a sua pata de funcionário”, reconhecendo nos seus contemporâneos “os seres mais degradantes que jamais existiram”. Hoje o conteúdo da vida em sociedade representa uma perda constante de si, uma degradação do desejo, esse pudor diante dos próprios sonhos. “Talvez um olhar desapiedado seja hoje mais necessário do que nunca, num momento em que se foram desmoronando uma a uma as ilusões das grandes filosofias da história, persuadidas como estavam de que as contradições da realidade permitiriam a sua superação e conduziriam a um progresso ulterior”, refere Magris. E acrescenta que o devir do mundo parece agora à mercê de uma caótica e imprevisível ebulição, indiferente aos grandes projectos e perspectivas. Devemos mergulhar de novo no abismo dos nossos próprios sonhos, recuperar essa condição que ali reside em estado de cativeiro, essas criaturas humilhadas, os condenados dessa outra raça que não nos permitimos mais encarnar, essas peles que escondemos no armário. À vida para a qual nos seduzem, com os seus confortos e luxos ordinários, é preferível esta dolorosa odisseia nas trevas, onde não há repouso, mas através da qual é possível escavar esses túneis e recuperar essa lucidez escabrosa e a fraternidade sórdida entre aqueles que precisaram de se dedicar ao crime e à maldade para chegarem a reconhecer os seus rostos no espelho. Neste episódio, e para nos acompanhar nesta descida e busca desse efeito de monstruosidade e plenitude transgressiva, buscámos a companhia de Pê Feijó, alguém que para falar de si começa pela vulnerabilidade, que encara esse gozo de trabalhar com os géneros como uma forma de ventriloquismo, o qual lhe permite identificar-se não com essas composições genéricas e...

Duration:02:49:23

Ask host to enable sharing for playback control

E se este país existisse? Uma conversa com Maria Etelvina Santos

5/17/2024
Que pavor este de porventura não existirmos, não a ponto de isso significar um abalo na vida dos demais. Insistimos sem saber a favor do quê, sem ficar claro exactamente que resistência é essa que começa por degradar-nos ao adulterar os ecos daquilo que dissemos. Devolvem-nos reflexos mutilados, degradam todas as formas de vida ao serem acolhidas entre as mortíferas hipocrisias do campo cultural. Como refere Owen Sleater, "uma das maneiras de encobrir ou aniquilar uma forma é instituí-la. A metodologia de instituir corresponde a um cisma na forma, a uma separação entre o seu modo de ser e o seu modo de actuar. Assim, toda a instituição é uma Igreja menor, que se separa para se reificar segundo o seu objectivo de persistir para governar na eternidade. Apesar de sermos na maioria filhos do império cristão, isso não é uma fatalidade. A verdadeira fatalidade é a crença nesta percepção de que a vida deve ser regida por um princípio unificador capaz de trazer ordem, aí onde, no entanto, tudo transborda. Todos nós já tivemos a experiência de ver emergir as formas, e até os seus movimentos, quer se trate de um caso amoroso, de um tumulto ou de um bar clandestino. Ver a autonomia das formas não é ser contra a instituição, mas distanciar-se dela, fugir dela constantemente. Isto exige que abandonemos esta percepção truncada do sensível. Ouvir, sentir, ver e tocar a ‘melodia da vida’. A melodia da vida é uma autonomia da forma." Vivemos encarcerados numa realidade irrespirável, sem ligação entre uma coisa e a seguinte. Não parece haver a possibilidade de narração de outra coisa, e, se alguém o faz, logo fica perante o zelo desses pasmosos habitantes que, desde a sua indiferença, vão gerindo o desgaste, sufocando tudo entre os seus costumes, essa prosápia medíocre e hipertrofiada. A cultura tornou-se mesmo o vício e a pretensão de tudo quanto julga ser “gente” num país sem termos de comparação que possam equilibrar essa doce paranóia de grandezas engendradas a meias pelo tédio e pela falta de imaginação. Outrora, o tempo e a posteridade ainda entravam em linha de conta, persistia a possibilidade desse último recurso, e de que estes ainda se prestassem a fazer justiça, corrigindo o triunfo e as suas tabelas. “Mas o tempo já não é capaz dessas cortesias nem de redescobrir a mensagem para lá do meio. Hoje os meios são a mensagem, mudam e apagam a História. A indústria da cultura destruiu a posteridade; não haverá revisões dos triunfos presentes” (Claudio Magris). A hora de muitos dos tantos que se vêem por aí insistentemente ignorados nunca chegará deveras, e talvez só possam contar com o benefício de uma redescoberta frouxa e momentânea por parte de meia dúzia de apreciadores. É isto o que somos, traficantes de cintilâncias e do caos de singularidades incalculáveis no meio desse aparatoso festival que resulta da submissão miserável da época às “linhas imbecis das morais e das eficácias primárias”. Decididamente, tudo quanto é interessante se passa na sombra. Cada vez sabemos menos da verdadeira história dos homens. Somos seres atravessados por este desacerto e esta incerteza descoroçoante. Não temos notícias de quem somos. Talvez por isso já não faça sentido procurar desfiar esse fio de vozes, esse sentimento partilhado, esta repulsa diante da cretinização e abominação da vida. “Quando se é fraco, o que dá forças é conseguirmos despojar os homens que mais tememos de todo e qualquer prestígio que ainda tenhamos tendência em consentir-lhes”, escreve Céline. A nossa obrigação é restabelecer o tumulto, criar zonas onde a paixão possa ser expressa sem complexos, sem os subterfúgios da ironia, lugares onde a errância e o excesso não sejam penalizados, mas acolhidas. Neste episódio, neste desejo de estender uma conversa que já vai longa, de reanimar a sua deriva, convidámos Maria Etelvina Santos a juntar-se a nós. Alguém que, para além do longo convívio com Maria Gabriela Llansol, de que se tem ocupado como ensaísta, mas também trabalhando o...

Duration:03:55:10

Ask host to enable sharing for playback control

A evidência do lixo. Uma conversa com Nuno Costa Santos

5/10/2024
O ruído assumiu uma preponderância de tal ordem que o seu ritmo se impõe como uma forma de coacção, uma moral que engole e, sem digerir nada, devolve tudo na forma de uma massa de detritos. Com todos esses juízos precipitados, tendenciosos, é raro darmos com um espírito lúcido, capaz de reservar uma relação de espanto e estranheza face ao mundo, repelindo a consciência comum. Quem se confronta realmente com a realidade e a julga pelos seus próprios meios, de acordo com a sua experiência e sensibilidade, acaba ilhado, vendo-se cercado de um imenso mar de ressaca, de toda essa civilização do cliché. Mesmo os artistas, até os escritores depressa se livram da sua diferença, deixam-se subornar. Se os lemos, se a vida deles nos sobe à boca, tem aquele gosto do vómito. Mais do que escrever grandes romances, poemas épicos, ensaios intermináveis e com vontade de abocanhar o mundo, seria necessário operar por meio de uma fantástica depuração, uma eliminação radical dos elementos degradados. “Vivemos num mundo onde há cada vez mais e mais informação, e cada vez menos e menos sentido”, nota Baudrillard. A maioria dos homens já nem dominam qualquer ofício, perderam até a capacidade de efabular, de contar histórias, de dominar a própria força e desejo, aquela irradiante virtude da alegria, aquele fulgor radical. Vemo-los revirar as bibliotecas em busca dessas partes íntimas dos mitos, procurando exumar pequenos detalhes, produzir ficções ingénuas e pífias formas monstruosas a partir de cadáveres que, na sua substância, permanecem intocados. Esta fórmula tornou-se um dos grandes desígnios de uma certa literatura que obtém o favor dos leitores, talvez porque lhes vende uma ideia de que o segredo que estamos a perseguir diria o suficiente. Há muito que se reconhece como a cotação da experiência baixou, abrindo caminho à desintegração da realidade, que, doravante, se adapta às imposturas que cada um carrega num esforço de adaptação a sociedades marcadas pela paranoia. Talvez por isso seja difícil encontrar aqueles que são capazes de converter a realidade que lhes é próxima, tão familiar, em algo que seja iluminador, e que possa escapar desse todo despropositado e que vai sendo salvo pela velocidade do naufrágio. Não deixa de ser curioso notar como nessas concisas fórmulas através das quais uma geração procurava passar à outra uma certa experiência, nos provérbios ou nos contos morais, tantas vezes o que exprimem parece um contrassenso, um desafio à lógica. Como se a autoridade que só chega com a idade o que nos conferisse fosse uma capacidade de estar apto a abandonar as nossas expectativas e ilusões de forma a acolher uma lição de vida. Há muito Benjamin questionava-se: “Onde é que se encontram ainda pessoas capazes de contar uma história como deve ser? Haverá ainda moribundos que digam palavras tão perduráveis, que passam como um anel de geração em geração? Um provérbio serve hoje para alguma coisa? Quem é que ainda acha que pode lidar com a juventude invocando a sua experiência?”. Vivemos desolados numa realidade que já não responde a qualquer desejo, a qualquer hipótese por nós formulada e, no entanto, são aqueles que acusam todo este regime em que as ratazanas e a paranóia se impõem aos nossos antigos sonhos e propósitos, são esses que encontram maior resistência. Nos nossos dias, o crítico inspira ódio, porque a sua consciência fere esse enredo indulgente que tantos tecem para si mesmos. “Parece um fantasma no meio dos viventes porque é o único a interrogar a sua noite. Nessa interrogação solitária, que resume a sua vida, dá aos outros a possibilidade de ver, mas ver verdadeiramente. Não lho perdoam” (Ernesto Sampaio). No meio deste regime que nos devolve o mundo em ruínas e submerso nos seus próprios detritos, é urgente escapar desta atmosfera opressiva. Como sinalizava Don DeLillo, a nossa cultura parece estar reduzida a este ditame: “E vai tudo para a lixeira. Produzimos quantidades fabulosas de lixo, depois reagimos ao lixo, não...

Duration:03:28:55

Ask host to enable sharing for playback control

Feira Internacional da Miséria Local. Uma conversa com Joana Matos Frias

5/3/2024
Essa coisada da literatura, onde é que isso já vai? Era para ter sido um extravagante ensaio geral entre os escombros da realidade, mas acabou como mais um antro para o recital dessas cansadas passagens obrigatórias, e o que nos escondem são esses exaltantes devaneios provocatórios, tudo é feito de forma a soterrar os melhores exemplos de um heroísmo indigesto. Passamos mal, cada vez pior, enquanto vivemos de castigo na sórdida intriga dessas réplicas medíocres, desses serviços de enciclopédia e de arrumação precária de alguns nomes nos balanços e panorâmicas da literatura portuguesa, sempre por ocasião de alguma efeméride, que logo deve sustentar o peso dessa canga. Estamos de tal forma contaminados pela técnica retrospectiva, que só damos mesmos pelos acontecimentos que rimam com o que já se deu, com a reprodução quase nos mesmos termos, como se tudo o que escapasse aos quadros de historicização já definidos devesse ser descartado como implausível. Parece que só o que está a dar, como assinalou Armando Silva Carvalho, é abocanhar a História… “A história da igreja, a história dos terramotos, a história das colónias, a história dos descobridores. Assaltam-se as bibliotecas, com sofreguidão, à cata de segredos, cabalas, diatribes. Toda essa patine seduz as cabeças devolutas e, é claro, não compromete nada nem ninguém.” Pois assim vamos, submergidos em ficções requentando os traumas do costume, como se tudo o que já passou devesse ressurgir, só nos restando dialogar com esse fantasma inexorável. E da poesia a ideia que se faz não é melhor, e continuamos entregues às excelências de um lirismo de obrigação, incapazes de definir outras coordenadas, alguma relação marcial com a época que nos coube, num regime de ataque e de defesa inextricavelmente ligados à expressão do ser vivo. Assim, nos sacudia Cesariny, notando como, “para qualquer lado exterior a nós que olhemos entramos numa zona que mesmo entre os mais novos está contente de ser puríssimo decalque de um momento anterior, um pensamento instalado na repetição (esta julgada muito boa para os efeitos da difusão)”. A questão hoje e sempre ainda deve ser colocado no sentido de perceber se somos capazes de reconhecer um inimigo. Os escritores, e os poetas em particular, vivem por aí nuns amuos, muitos satisfeitos consigo próprios, exigindo a paz para se entregarem ao seu suave degredo. Entretanto, aquilo que se escreve já nem deseja ser lido, dá os pontos, reclama a derrota cada vez mais cedo, não ensaia nem propõe nada, e admite-se até que a literatura está a ceder o lugar ao terror, às notícias sobre o terror, aos gravadores e às câmaras de filmar, aos rádios, a esse zumbido das notícias de catástrofes, umas sucedendo-se às outras, produzindo a única narrativa a que as pessoas reconhecem alguma validade. Há não muito tempo, Don DeLillo ainda teve a audácia de sugerir que há um curioso elo de ligação entre escritores e terroristas. “No Ocidente convertemo-nos em famosas efígies, ao passo que os nossos livros vão perdendo capacidade de dar forma ou de influenciar as pessoas (…). Em tempos acreditei que era possível a um romancista modificar a vida interior da cultura. Esse território, hoje em dia, foi tomado pelos pistoleiros e os fazedores de bombas. Conseguem arremeter contra a consciência dos homens. Isso que os escritores faziam antigamente, antes de terem sido comprados.” Aí está a consciência em termos bastante claros de um esvaziamento do papel do escritor, e, em muitos casos, até de uma certa renúncia a assumir qualquer acção no desconcerto das coisas. Por estes dias, os escritores refugiam-se nessas recriações do seu antigo prestígio, que servem apenas para uso interno, sem nenhum reflexo sério sequer ao nível da balança comercial. Bastam-se com a encenação desses miseráveis concursos de talentos aprovados sem distinção, mas apenas com o louvor que baste à difusão dentro do regime do espectáculo. Para deixar à porta não só as velhas ilusões como essas coroas de louro e a...

Duration:03:52:12

Ask host to enable sharing for playback control

Crise climática e hipocrisia pornográfica. Uma conversa com Leonor Canadas

4/26/2024
Emergência, crise, desastre, colapso, extinção, palavras, palavras, palavras, o que podem elas fazer ainda se a violência maior reside precisamente nesse encadeamento azucrinante, nesse modo de alimentar um frenesi de cenários catastróficos sobressaltando-nos, instrumentalizando a indignação, até nos entregarem à indiferença e ao cinismo, de tal modo que é isso o que hoje transparece em todas as coisas, à medida que elas perdem a sua imagem, o seu espelho, o seu reflexo, a sua sombra, cada vez mais distantes da sua substância, incapazes de oferecer alguma resistência a essa tradução e aceleração impiedosa, arrastando-nos com elas nesse movimento implacável de contracção e de inércia. Baudrillard põe a hipótese de estarmos sujeitos ao mesmo movimento de expansão do universo, tal como as galáxias, presos num movimento definitivo que nos afasta uns dos outros a uma velocidade prodigiosa. O cenário de desastre e a sua pressão constante faz estremecer a trama da realidade a um ponto em que as coisas já não coincidem consigo mesmas... Sentimo-nos desfigurados face aos nossos reflexos. Como vincava Macedonio Fernandez, “as coisas podem chegar a um estado de descontrole maior do que elas próprias, ou seja, a um grau de alteração em que a sua existência acaba por ter menos valor do que uma existência zero, à medida que o efeito de substituição gera uma distorção de tal ordem que nos revela a sua tentação maléfica”. Por todo o lado é a descrença que assume peso, que impõe o seu signo sobre os quadros que melhor representam a época. Todo o efeito ameaçador, toda a consciência do horror que nos espera parece alimentar mais ainda essa força de inércia, uma imensa indiferença. O maior receio, aquilo que mais nos perturba, é a sensação de vivermos existências desprovidas de qualquer significado, estando submetidos a um efeito de desagregação que nos torna seres abjectos apesar das nossas melhores intenções. Parece ser mais actual do que nunca essa indagação de Pedro Oom, “Que pode fazer um homem desesperado, quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?” O poeta desapareceu faz hoje meio século talvez por não ter reservado no seu organismo margem suficiente para uma retumbante alegria, absorvendo inteiramente essa Primavera magnífica que tomou conta das ruas, um poema demasiado intenso para que ele não embarcasse com todos os seus anjos e demónios, ele que, de tanto destilar o ódio que lhe merecia o reino cadaveroso, sucumbia assim de absoluta comoção. Ao que parece ainda por lá anda, escolheu essa Lisboa e o seu tão inebriante vislumbre de uma outra vida comp paraíso, e ficou ali com um riso esplendente à entrada do restaurante onde combinara almoçar com alguns dos seus companheiros de consciência e sufoco, Vitor Silva Tavares, António José Forte, Virgílio Martinho... E se ele se encantava, só eles sabiam como tinha visto tudo o que queria, tinha ouvido aquela rima que o abalroou da vida, para não ter de engolir nem uma dessas pingas de merda que vão amachucando a nobilíssima visão que uns tantos tinham buscado. Neste episódio procuramos encontrar um ritmo que soe a uma contagem decrescente, no sentido de descongelar a história, recuperar uma perspectiva política, e até uma esperança na nossa capacidade de afectar o tempo, provocar uma necessária mudança de rumo. Pode ser que as palavras que usamos para despertar não queiram fazer outra coisa senão romper com esta sensação de luto entre nós e as palavras, entre as palavras e o mundo. Assim, e ao longo da muralha que habitamos prosseguimos esses exercícios de entoação, como quem anda à caça espreitando nos interstícios entre si e o mundo em busca dessas palavras nocturnas, palavras gemidos, palavras que nos sobem ilegíveis à boca, palavras nunca escritas, palavras inapropriáveis por parte desses empórios da redução do sentido e do alcance, palavras capazes de flanquear este absurdo em que nos fazem chafurdar. Para isso, para reconhecer e reclamar a ameaça existencial que paira sobre todos...

Duration:03:32:45

Ask host to enable sharing for playback control

Comércio de literatura para cansados. Uma conversa com Gonçalo M. Tavares

4/19/2024
Consideremos aquilo que se espera hoje do escritor face à vida literária que nos resta, como este está condenado a exibir-se como uma espécie de fantasma em nome de um prestígio ou até de uma função que caiu em desuso, como um defunto que aceita fazer esses papéis de figuração nas cerimónias fúnebres e encomendas das almas que compõem o quadro cultural. Em geral, todos os agentes promotores, incluindo os editores, assumem aquela postura muito compungida, e colaboram com o protocolo dessa infinita despedida, sempre assustados com qualquer coisa que modifique os seus hábitos, receando que um dia deixem de contar com eles para estas liturgias. Dado o imenso desprezo com que se olha hoje para a literatura, tendo esta sido reduzida a esse conteúdo processional, chamando a si essas actrizes que adoram representar o papel das viúvas inconsoláveis do espírito, há muito nos acomodámos a este registo piedoso, que não admite que aconteça algo de inesperado e que nos faça sentir que vai estar outra vez tudo em aberto, tudo ainda por dizer. A começar precisamente por essas coisas que de tão cultuadas há muito deixaram de ser levadas a sério. Foi precisamente o prestígio aquilo que deu cabo da literatura. Morreu dessas honrarias e desse chorume dessas que os foram envenenando para reclamarem os benefícios sociais e a pensão por viuvez. Houve um momento em que o escritor, ao sentir que a lepra do renome se lançava sobre ele e a sua obra, compreendeu que dificilmente se libertaria dessa dignidade imobilizadora, dessa sacralização sufocante, tornando-se uma instituição à medida que o regime o anexava, para poder ignorá-lo em boa consciência. Este processo coincidiu com o momento em que o poder percebeu que a melhor forma de industriar as consciências seria substituir a realidade pela ficção. Assim, como notava Ballard, se há cem anos, havia "uma distinção clara entre o mundo exterior do trabalho e da agricultura, do comércio e das relações sociais — que era real — e o mundo interior das suas mentes, devaneios e esperanças", hoje essa fronteira parece ter-se apagado, e a ficção e a realidade começaram a tornar-se indistinguíveis. A realidade que não se abatia face às crenças dos indivíduos, começou a ver-se distorcida, e o papel do escritor, que passava por inventar uma ficção que condensasse as várias experiências do mundo real, dramatizando-as de uma forma ficcional, passou a ser exercido sobretudo por propagandistas e publicitários. "As paisagens exteriores dos anos setenta são quase inteiramente fictícias, criadas pela publicidade, pelo consumismo de massas ... a política é gerida como publicidade", vinca Ballard, adiantando que isto levou a que o escritor ficasse desempregado, e as suas ficções foram-se tornando ilegíveis, uma vez que os leitores estavam agora acostumados a uma leitura bastante supérflua da própria realidade. Alguns, mais danados, ainda se reinventaram através de meios perigosos, como insultos, ventos que cercavam, sacudiam e esbofeteavam os seus leitores, aqueles resistentes que tinham a capacidade de enfrentar esses processos de denúncia e loucura. Hoje os grandes leitores são como loucos. E, como nos diz Gonçalo M. Tavares, a loucura é como uma pátria à parte, uma raça à parte... "Os loucos mexicanos falam fluentemente com os loucos russos, é tudo gente que se entende". Neste episódio, e no intuito de compreender o estado de decomposição actual do espaço literário, quisemos consultar este homem que dirige há muito esse gabinete de curiosidades, estudos avançados e investigações peculiares nesses bairros abandonados e velhos edifícios ou fábricas desactivadas onde alguns dizem ouvir ainda a imaginação a fazer das suas a altas horas. Em vez de nos vir com as tão comuns e estafadas rotinas desses leitores que se tomam por uma nobreza recolhidos nas setes quintas do espírito, a sua obra consegue ser instigante sobretudo nos momentos em que desenha e nos enreda em percursos de leitura bastante improváveis e audaciosos. Ele...

Duration:03:39:23

Ask host to enable sharing for playback control

Desposar o cadáver. Uma conversa com Ricardo Cabral Fernandes

4/12/2024
A juventude devia importar-nos? E os jornais? Ou a falta dessas noções que iam abrindo caminho a uma renovação, a uma suspensão das velhas crenças e hábitos, dessa realidade que é usada como um argumento para vivermos sufocados? Talvez as respostas sejam o problema. Talvez as perguntas pudessem ser o suficiente. De tal modo impertinentes, umas atrás das outras, até que os que oferecem sempre as mesmas lérias vissem a sua convicção humilhada. Fazer perguntas para atazanar, para lhes dar cabo da paciência e, enfim, também do esquema. Tão seguros que estão atrás dos seus planos. A crueldade inventa sem parar, e muitas vezes encontra o caminho limitando-se a pressionar com a dúvida até deixar esta gente nervosa. Ao primeiro sinal de que as coisas não estão encaminhadas no sentido com que contavam, e largam tudo, desertam ou mudam de tendência. Como vincou Ivan Ilich, “o simples facto de uma pessoa redescobrir a surpresa pessoal, em vez de se fiar em valores produzidos pelas instituições, é susceptível de abalar a ordem estabelecida”. Entretanto, está dada uma volta em torno do sol desde que iniciámos este podcast, meia centena de episódios, um longo ensaio conspirativo, e assim temos consultado historiadores, pugilistas, ligeiros pianistas, revolucionários orto e heterodoxos, algumas mulheres em meias-noites especiais. Temos pesquisado desvãos, esses gestos fantásticos significando entendimento. Não sabemos exactamente do que se trata, senão que nos importa estudar o assunto com a grande minúcia que ele merece. Também porque estamos claramente perdidos, andando em círculos, atafulhados em papéis e teorias. A nossa necessidade antes de tudo é uma necessidade de nós mesmos. Naturalmente, também temos recorrido a certa gente já bastante ferida pela Terra, e que, depois de convenientemente conduzida a esse transe meditativo, se torna imbatível na arte de abordar problemas insolúveis, passeando ao longo deles horas, até o tempo se revelar essa ilusão que é. Não valeria a pena tentar resumir os melhores achados ou até certas baboseiras em que fomos recaindo, esses falsos rumos temporários ou os tantos desencontros, becos sem saída, investigações falhadas. Servimo-nos de todo o tipo de influências, agora mesmo, o Nuno Bragança vem-nos lembrar como já na Bíblia se fala em determinados anjos que iam pegar profetas, levando-os pelos cabelos a distantes sítios onde daniéis aflitos se rebolam com leões, interminavelmente. Trata-se de manter a conversa viva, dê por onde der, assim, e de tanto insistir, lá toma seu corpo um soltíssimo narrar, e nunca se é mais firme do que embalado por um sentimento de revolta, e, como assinalou Andrea Cavaletti em diálogo com Furio Jesi, “só no instante da revolta os homens vivem verdadeiramente em estado de vigília”. De resto, nesse “quotidiano regulamentado pelo trabalho e pelas pausas obrigatórias, estão sozinhos, cada um mergulhado no seu sono: o seu ‘tempo normal’ não é nada mais do que o produto de uma tecnicização contínua, o fruto da ‘manipulação burguesa do tempo’”. Acabaremos por construir alguma perspectiva ou uma nau de outra ordem, para se lançar num curso diferente? É difícil dizer. Talvez seja mais importante desfazer-se da fortaleza de si e confiar-se a algum companheirismo. Buscar gente, nascer uns com os outros numa misturação de respirar completo, afectando a mudança do presente noutras luzes íntimas de uma outra relação com o passado e com uma fome de um futuro para lá daquele que vem nos prospectos. Neste episódio, e nesse ensejo de encontrar pistas de ascensão à realidade, contámos com o apoio de Ricardo Cabral Fernandes, ainda em período de luto depois de ter sido obrigado a despedir-se da sua investida quixotesca, tendo criado uma plataforma "não-tradicional" de jornalismo como foi o Setenta e Quarto nos três anos da sua combativa existência. “Disse alguém que o homem subjectivo não podia tomar-se directamente a si mesmo, senão em relação à resistência que o mundo lhe oferece, senão em...

Duration:03:37:19

Ask host to enable sharing for playback control

Quem se destrói não se cansa. Uma conversa com Nuno dos Santos Sousa

4/5/2024
Na década de 1960, José Gomes Ferreira falava de "cerca de trezentas pessoas heróicas que andam de um lado para o outro, em Lisboa, a fingir cultura". Não estamos seguros sobre os números actuais, uma vez que se tornou bastante difícil realizar censos num tempo de tal modo desvitalizado, sem recreios, ringues ou arenas, e é, de resto, esse um dos aspectos que provocam mais frio, a sensação de não sabermos quantos somos, nem com o que contamos. E se não falta garganta aos actuais mestres de cerimónia, depois se nos deixamos levar e entramos por aquelas espeluncas a dentro é tudo demasiado confrangedor, acabamos por ver a noite desfeita e esparvoada diante de uns espectáculos de striptease em que os clientes às tantas pagam é para aquelas aberrações de feira vestirem qualquer coisa. Todos acusam a ausência disto e daquilo, e se se fala muito em jovens promessas, tarda em ouvir-se esse ronco instigante da magnífica fome nova. Mas como lembrava o Macaco, mesmo essa obsessão com o "novo" ("novos espaços", "novas formas", "novas linguagens") é acima de tudo um sintoma do desespero reinante, onde todos rezam pelo surgimento de um novo produto que se inscreva num registo alternativo ao do desastre em curso. Naturalmente, isto só abre margem para um tráfico de distracções. Quanto aos elementos de regeneração e aos gestos próprios da juventude, tudo isso parece ter-se eclipsado, depois dessa forma de condicionamento para trocar a vida por ambições e resumi-la com base em formas de subjugação consentida, andando todos embarcados nos delírios cretinizantes do empreendedorismo. Se antes os jovens detestavam o trabalho, e se entregavam a algum enredo perdulário, estimando os seus hábitos de renúncia e de tédio, que deixava a vista desimpedida de forma a reunirem essa "astronomia de imagens essenciais", de que falava Herberto Helder, hoje gostam muito de falar e de exprimir sentimentos estrondosos de forma a se isentarem de qualquer tipo de acção ou compromisso mais severo. Se antes olhavam para as mãos, com um desprendimento íntimo, vagaroso, quase sardónico, agora fazem contas, desenham soluções de investimento, estimam os juros que irão auferir seguindo este ou aquele plano de valorização pessoal. Num país cada vez mais condenado a si mesmo, as redes de competição dominam todos os aspectos da nossa existência, e aqueles que patrulham as zonas comuns do campus cultural "só se apertam para cumplicidades relezinhas", como vincava Maria Velho da Costa. "País onde tudo o que é comunal e fecundo é maldito. Terra que não aguenta expressas a raiva e a maldade que estão também em toda a criação conjunta. Canteirinho de sentimentos bons onde ninguém sabe gerir a violência senão pela paixão ou a ruptura. Onde cada um não aguenta a mesquinhez dos outros por demasiado terror da própria. Onde todo aquele que intervém a criar é melhor que todo aquele que intervém a criar e por isso só os que estão para conservar e destruir, esses, estão juntos." Vai ser preciso não um projecto de salvação, mas uma doença fabulosa, que reponha o sentido das coisas, algo como um "cancro novo em corpo de lepra lenta". Por agora, predomina a morbidez da vaidade, "a mesma ordem de matar de manso em tudo e todos", de abafar, de gerir um imenso pacto no sentido de silenciar quem quer que não se limite a este triste esquema de engodar a própria morte, fazer dela um patético número de cabaré. E se a universidade, como sempre, encolhe os ombros, à volta anda tudo desavindo, nuns perpétuos amuos que não dão margem a qualquer espécie de jogo. Este regime de castração química de todos os intervenientes que ofendam o protocolo e código cerimonioso, tem-nos a todos de castigo. Querem vir para a literatura como quem se tranca no quarto e não quer ouvir falar do mundo, e tremem sempre que algum rumor atravessa as paredes. Se Velho da Costa notava que antes se escrevia sobre o papel, do lado de fora do corpo, hoje tudo faz parte do corpo, e tomam a crítica por "body shaming". Escrevem...

Duration:03:44:12

Ask host to enable sharing for playback control

A miopia em que nos escondemos. Uma conversa com Maria Antónia Oliveira

3/29/2024
Por cá, nas representações que fazemos de nós próprios, cedemos demasiado depressa ao registo da paródia mais alarve. É um modo de nos defendermos do nosso encanto, das primeiras e mais honestas ambições. Recosemo-nos no interior dessa carapaça desgostante, e assim nos vamos aliviando das exigências que chegámos a alimentar. Hoje, qualquer reflexão que se manifeste entre nós aparece antes de mais como paródia, e é muito difícil ir além dela. “As asas voltam a entrar no pássaro para o atar”, como escreveu Éluard. Seria preciso que o país aderisse, não aos regimes alfandegários e aos mercados comuns, mas ao surrealismo, perdendo o medo de nos surpreendermos, deixando de usar a moeda Bem-Mal, rejeitando corromper o ideal amoroso segundo o regime mesa-de-família-cama-de-casal. Deveríamos preferir o abuso a estes tristes usos que vamos dando à vida. Em vez de sufocarmos em intrigas de poder, mais valia que nos abandonássemos de vez à nossa propensão para a rebaldaria, reconhecendo como o acaso é uma força esplendorosa, e talvez então emergissem novamente impetuosos navegadores nesta tão desfalcada raça. Tudo o que pensamos, exprimimos e fazemos engrossa uma conspiração contra as nossas próprias aspirações, e era preciso assumir um desejo que nos ligasse à realidade, esta que por falta de empenho dos espíritos com alguma apetência lírica, simplesmente recusa a existência do poeta. Se nos tornámos muito hábeis em desenvolver essas debilidades que nos sirvam como justificação para não irmos além do que já somos, isso explica que, por agora, a nossa ainda seja só uma cultura que serve de desculpa. Não fazemos outra coisa senão pedir imensas desculpas por não estarmos à altura de algo mais. Lá nos vamos acolhendo e conformando com a estafada vidinha, a “videirunha à portuguesa”. E, se não deixámos de ser pobres, nunca sequer assumimos as nossas obrigações para com essa condição. Temos o rancor e o ressentimento, mas faltam-nos as forças que lhe são próprias. Como lembra Borges, “ser pobre implica uma posse mais imediata da realidade, um passar por cima do primeiro gosto áspero das coisas, conhecimento que parece faltar aos ricos, como se tudo lhes chegasse já filtrado”. Como não nos livramos dos complexos e da vergonha da nossa realidade, só herdamos filtros, aderimos a esse patetismo degradante de quem se humilha a si mesmo, se escraviza a si próprio. Face a todo esse enredo, a nossa maior pobreza é mesmo o medo que temos de nós próprios, e uns dos outros. Em vez de nos reconhecermos e instigarmos, a nossa cultura apenas nos abafa e trucida. Em vez de retirarmos encorajamento da noção de que há muito por fazer, para nós não parece haver nada mais exasperante que o facto de nós podermos significar ou dizer seja o que for. Se não somos nada ou somos tão pouco, em vez de nos agarrarmos a isso, poderíamos aproveitar e aventurarmo-nos, sermos a frescura vindoura. Seria bom que abdicássemos dessa torpe etiqueta, da barafustação inconsequente, impedindo que o odor dos escombros se dissipe. Uma mulher feita para si mesma, um homem que correspondesse às suas próprias necessidades, isso seria algo que nos faria enfim ter vontade de sacudir as nossas vidas, e vesti-las com certo garbo. Talvez então pudéssemos acolher verdadeiros prodígios, livrarmo-nos dessa telenovela que sempre só tem ouvidos para a bisbilhotice que a todos nos rebaixa. Raramente temos dado a oportunidade uns aos outros para abrir a boca, ou segurar a caneta, não para vir com as bacocas frases do costume, mas para falar do que, em penetração, nos atrai ou comove. Somos assim relativamente mudos, e forçados a pagar multa sempre que assumimos um registo eloquente, sempre que levamos a vida à boca e a reproduzimos com um vigor fantasioso. Derrotados por essa miopia que nos serve de amparo e desculpa, recusamos o conhecimento nítido e imprevisto de que a vida se corresponde, mesmo que de longe em longe, com a poesia. Neste episódio, e com o centenário de Alexandre O’Neill a pairar...

Duration:03:44:17

Ask host to enable sharing for playback control

À Espera de um like de Godot. Uma conversa com Vania Baldi

3/22/2024
Uma ilustração adequada da condição mais comum dos nativos digitais seria uma perspectiva de campos a perder de vista dominados por uma espécie de plantação onde os corpos estivessem alojados em casulos, como larvas incapazes de completar a sua metamorfose, diluindo-se aos poucos numa espécie de banho amniótico, exercitando o seu suposto potencial através de uma infinita sucessão de projecções virtuais. Passeando por ali, ouvir-se-á uma toada ou murmúrio que vai de boca em boca, com variações subtis entre um perpétuo suspiro ou bocejo, entrecortados por alguns gemidos de deleite ou de frenético prazer. A sensação é a de estarmos numa imensa sala de um casino, mas sem música de fundo ou os ruídos das slot machines, apenas esse rumor contínuo, o de um longo processo de digestão. Vivemos no estômago da máquina, num conjunto de galerias infernais, fora do tempo, demasiado longe do mundo, processando estímulos cada vez mais rarefeitos. Num processo de respiração assistida, a nossa actividade psíquica é monitorizada, e nem se pode dizer que sonhamos. Integramos um imenso organismo que foi perdendo funções vitais, condenado a um processo de hibernação que nos aproxima de um estado vegetativo. Nos primeiros tempos de forçada inacção, e depois de azedarmos de impotência, a consciência só era capaz de produzir pesadelos. E a solução foi induzir quimicamente um sono superficial que não nos deixa mergulhar fundo o suficiente para dar largas ao inconsciente. Antes disto, estávamos sujeitos a permanentes crises de ansiedade, balançando entre os períodos em que nos sentíamos extenuadas, como gatas borralheiras de uma civilização decadente, e aqueles outros momentos de êxtase e aflição, como cinderelas escapando ao ouvir as badaladas da meia-noite. “As rémoras, os ogres, os deuses mais bonitos,/ velam nossa carne como grifos educados”, de acordo com a visão de José Miguel Silva. O processo de transição acabou por não ser de ordem ecológica, mas de consciência. Por motivos de eficiência energética, a maior parte da população acolheu este quadro de hipnose. Não foi preciso simular nenhum processo democrático, pois desta vez realmente já não nos restavam alternativas. A civilização rendeu-se perante o seu próprio ultimato. Mas os intelectuais garantiam que a maioria nem daria pela diferença. O futuro seria como uma longa noite de sono. Como foi que o poeta nos retratou antes de tomar a pílula azul? “E o pior é que chamamos liberdade/ a um tapete que, rolante, já não ouve/ a opinião dos nossos pés; que nos leva/ para onde e anuímos, alheados,/ aos mecânicos desígnios do terror.// Respiramos cadeados, consumimos injustiça,/ damos duas várias voltas ao risonho torniquete/ que nos serve de chapéu; trocamos a cabeça/ por um prato de aspirinas. Os clássicos da vida/ sem tristeza nem remorso (Cinderela,// Varadero, off-shore) iluminam o cenário/ em que dormimos, inocentes como balas/ e nem sei como não somos mais felizes. (…) Neste cerco, viver é uma questão/ de prorrogar o desalento, de iludir/ o infortúnio: cerramos uma porta suicida,/ desatamos a gravata, ficamos satisfeitos/ quando o gelo, na bebida, é de boa qualidade.// Se olhamos para o chão desaparece/ o horizonte; se olhamos para o céu/ ficamos sós. Não percebo como rimos/ quando pedem que posemos para a foto/ de família. Alguém nos enganamos.// Confundidos pelo surto de mentira,/ leiloados pela última hipnose,/ enxertados no pedúnculo da morte,/ semi-envergonhados, de sorriso padecido,/ dizei-me se este rosto de cartão amarrotado,// se esta alma como um campo pedregoso,/ se estes pés adaptados ao espinho,/ se isto que nós vemos é um homem” (José Miguel Silva). Para surpresa dos engenheiros do programa, nos momentos finais, em vez de lágrimas e terror, verificou-se que o termos sido obrigados a dizer adeus ao nosso modo de vida trouxe uma sensação de alívio, e até algum ânimo, pois o que quer que se seguisse pelo menos já seria outra coisa. Fartos da colmeia digital, exauridos por esse regime...

Duration:03:01:11

Ask host to enable sharing for playback control

Construir barragens para desacelerar o tempo. Outra conversa com Diogo Duarte

3/15/2024
Hoje tudo nos aparece escaqueirado pela palavra mais fraca, pelas noções mais frágeis, mas que se infiltram e servem como uma razão e um denominador comum para essa massa opaca dos monstros práticos. E se todos anseiam desesperadamente por vencer o impasse azucrinante em que vivemos, talvez hoje fosse politicamente mais relevante se congeminássemos um verdadeiro bloqueio, a construção deliberada de um impasse. Dan Fox, um escritor e músico nova-iorquino, sugere que se possa abrir espaço através de uma cuidadosa deflação temporal, uma vez que o mais difícil parece ser encontrar saídas. Talvez o mais urgente seja suspender a vertigem delirante em que estamos embalados, e então procurar uma solução de compromisso para organizarmos o nosso pessimismo. É um modo de desobediência e resistência, quase bartlebyano, uma recusa em ser produtivo, em acatar as instruções, e não reconhece uma diferença entre o descontentamento ou o mal-estar que se arruma à esquerda ou à direita. Em vez de oposições que sempre se anulam, talvez um acordo que nos ligue do lado da insolência, impertinência, descortesia, truculência, talvez enquanto seres que recusam as habituais tácticas, a moderação e a cautela, preferindo algo de intratável: "prefiro não o fazer". Uma letargia assumida ao ponto de se tornar um elemento claro de desafio, de recusa, ganhando expressão através de interrupções forçadas dos fluxos, seja do trânsito automóvel seja de outras formas de tráfego, e à cabeça desse esmagador enredo financeiro que aos poucos empurra a própria existência para as margens. Greves, boicotes generalizados, todas essas formas de obstrução que funcionariam como as barragens hidroeléctricas, uma forma de capturar as forças até que estas se definam e possam expressar uma vontade menos equívoca. Ainda no rescaldo das eleições do passado dia 10 de Março, mais do que vir para o teatrinho da perplexidade e da indignação da classe de sabujos que a elite mantém nas tarefas de representação do nosso quadro político, interessa-nos prosseguir a análise da extensão absurda do bem-estar cruel que foi promovido e é tão propalado como o nosso "modo de vida". Na verdade, passou há muito a ser um modo de devastação planetária, e em vez de vir com a língua transformada em fada para distrair e provocar cócegas no juízo de quem nos ouve, devemos mostrar como é o próprio ar do tempo aquilo que nos dilacera. A pós-verdade é esse quadro de relativismo para o qual já O'Neill apontava ao falar de um tempo detergente. Voltamo-nos para a cultura e a história no sentido de readquirir uma gramática e certas noções comparativas, e até para voltarmos a saber o que é um ser humano e a desistir de compreender a realidade apenas segundo um regime de semelhanças. No fundo, um bloqueio que exprimisse o mal-estar que hoje é o sentimento mais presente em toda a sociedade seria uma forma de sairmos desta submissão a um regime de eficácia e de aceleração que há muito nos ultrapassou, deixando de corresponder às nossas aspirações. "Participamos no mundo através da opinião, já não através de intervenções, acções e planeamentos", notava o designer Otl Aicher. "Todos vemos o estado deste mundo, todos sabemos que algo tem de ser feito. Mas só escrevemos apelos. Participamos com plena consciência no processo cujo fim é previsível, mas existe o perigo de não podermos fazer nada." Assim, se não é claro qual seja a alternativa, podemos pelo menos concordar que não é "isto", e que é preciso, por todos os meios ao nosso alcance, travar "isto". Por uma vez, é evidente que a destruição adquiriu um evidente elemento salvífico. Para nos ajudar a ler a recomposição do quadro político e dos resultados da passada noite eleitoral, pedimos ao Diogo Duarte, historiador que se tem dedicado a compreender os fulgurantes movimentos anarquistas que chegaram a ter grande peso entre nós, que voltasse a juntar-se a nós para fazermos um exercício de enquadramento e interpretação dos sinais de um ressentimento que deu uma...

Duration:03:34:54

Ask host to enable sharing for playback control

Uma Outra Educação. Conversa com Jorge Ramos do Ó

3/8/2024
É preciso saber andar pelo passado, alimentarmo-nos dele, e não como qualquer coisa morta, mas como matéria que é possível constelar com o presente, reinterpretar, sem repetir os mesmos gestos, caindo na prisão de um encanto mítico. Em tempos, a escrita e a leitura, sendo actividades vagarosas, reconheciam que a tarefa que se nos impunha era avançar para trás, na direcção da coisa desconhecida no interior da própria cultura. Era preciso saber perder o tempo em busca do tempo perdido, e valer-se de toda essa abandonada riqueza. Outros já souberam a palavra que te falta ou que ignoras, outros fizeram a seu tempo os gestos necessários. É preciso saber renunciar à engrenagem diabólica deste tempo, interromper-se, romper com um modelo de educação que passa por imitar até ao ridículo os gestos e a linguagem dos seus antecessores, deixando escapar o elemento transformador das suas acções e escolhas. É preciso renunciar também à nostalgia, uma vez que nela também se escondem o poder, a violência, as velhas hierarquias e valores repressivos. E, no entanto, há essa pequena luz bruxuleante, a das estrelas vencidas, há esses murmúrios distantes nos quais é possível beber outra instrução. É fácil deixar escapar o principal, pois a época impõe sempre o seu pânico, e vem-nos com falsas urgências, os seus índices. Talvez fosse melhor que surgisse de uma vez uma geração que se desse realmente conta de que não tem nada a perder, e essa estivesse por fim disposta a levar a sua consciência e convicções até às últimas consequências. Estamos necessitados de algum grau de radicalismo interior, de uma inquietação profunda diante do mundo, de forma a nos interessarmos pelo abismo deste tempo, pelos desafios próprios da época que nos corresponde. Se não falta por aí esse fácil pessimismo apocalíptico que permite a alguns maestros da retórica viverem em bicos de pés, sempre a conjecturarem cenários para acicatar as nossas inseguranças e medos, o que tem faltado é uma verdadeira vontade de perceber o que possa ser o fim do mundo. Como assinalava Eduardo Viveiros de Castro, pode ser que hoje estejamos a passar pela mesma coisa por que passaram os índios em 1500. "Eles continuam aí, mas o mundo deles acabou em 1500. Se formos falar do fim do mundo, pergunte aos índios como é, porque eles sabem. Eles viveram isso. A América acabou. Pode ser que venhamos todos a ser índios, nesse sentido. Todos venhamos a passar por essa experiência de ter um mundo desabando. No caso deles, eles foram invadidos por nós. Nós também vamos ser invadidos por nós. Já estamos sendo invadidos por nós mesmos. Vamos acabar com nós mesmos da mesma maneira como acabámos com os índios: com essa concepção de que é preciso crescer mais, produzir mais." A pior forma de se confrontar com as coisas é achar que se conhece o problema, não chegar sequer a formular as perguntas, a enquadrar de forma correcta a crise que temos diante de nós. É preciso instigar a dúvida, e para isso, para aprofundar uma reflexão crítica sobre as questões da educação, neste episódio contámos com esse esforço peregrino de Jorge Ramos do Ó, historiador e professor do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Alguém que se tem batido para contrariar o regime de sufoco e todos os constrangimentos e as formatações que se colocam nos actuais modelos de ensino, e também de investigação e exploração no quadro académico, denunciando essas forças que tendem para a fixação de sentidos e para a progressiva rigidez dos modos de pensar.

Duration:02:13:17

Ask host to enable sharing for playback control

Abrir caminho a golpes de fígado para escapar do cemitério das letras. Conversa com Rui Lopo

3/1/2024
Para preservar o desejo hoje sentimos uma necessidade de fuga, de escapar aos ambientes onde o vazio é disfarçado com recurso a formas de pirotécnia, a essas redundâncias esterilizantes que tomaram conta dos modos de representação culturais, tendo-se permitido que os alicerces da literatura portuguesa apodrecessem, acelerando o esquecimento sobre o que foi feito antes para que os nossos generais de aviário pudessem beber a consagração até às fezes. Tem sido cada vez mais difícil desenvolver esforços no sentido de dissolver aquela estupidez tradicionalista que se instala como um bolor em torno das figuras que nos serviram magníficos desacatos, contrariando esses facilitismos e fábulas provincianas em que se aquecem os nossos recitadores medíocres. O passado e os mortos resistem às convenções museológicas, e estão ali aqueles artistas que melhor jogaram no sentido da carnavalização das suas próprias identidades, apontando a esse paralisante enredo narcísico que é hoje a primeira estrutura que é nessário demolir se quisermos prosseguir o esforço de desintegrar a realidade maciça e ruidosa que nos tem subjugados. É como se não fôssemos capazes, no curso normal da vida, de nos sabermos o órgão do tempo, os agentes do que se segue. Se queremos propor um recomeço, talvez devêssemos desde logo deixar de lado essa concepção piedosa da cultura, que se impõe sempre como uma forma de castração, um apelo à resignação infinita, propondo em seu lugar uma concepção positiva e que integre desde logo o imenso mal-estar que sentimos, permitindo elevar o registo dramático, conflitual, e dando expressão até a uma pura raiva contra tudo e contra todos. Por agora, e enquanto essa água morna continua a inundar tudo, resta reconhecer que não temos as condições para propor uma transformação profunda do ambiente ao nosso redor, falta um mínimo grau de solidariedade das consciências quando a própria noção do mundo é algo que nos divide em vez de nos animar a assumir uma busca e uma luta em comum. Os próprios livros parecem referir-se cada vez mais a uma relação que está ausente do viver comum ou que exprime uma nostalgia face a um idealismo ou ingenuidade perdidos. A nossa gramática cultural parece esvaziada de um propósito, impedindo-nos de firmar desejos e metas colectivas, e, assim, tudo parece destinado a desvanecer-se ensaiando poses irónicas ou sarcásticas para essa eternidade demasiado transitória ou degradante. A maior derrota que sentimos, contudo, é que quando alguém fala todos se põem a adivinhar a formulação que lhe irá sair, mas são cada vez menos aqueles que permanecem vigilantes, admitindo que possa ser a imprevisibilidade a falar pela sua voz. Somos assim derrotados pelas nossas próprias expectativas, e fica em causa o sentido mais profundo da amizade, aquela disponibilidade que, segundo Blanchot, passa pelo reconhecimento da estranheza comum que não nos permite falar pelos nossos amigos, mas apenas falar com eles, reservando, mesmo na maior familiaridade, essa distância infinita, essa separação fundamental que abre caminho a uma interrupção do curso mais banal dos dias. Neste episódio, juntou-se a nós Rui Lopo, um assumido "arqueólogo" literário, que se tem dedicado há bons anos a um trabalho de restituição e renovação do diálogo com alguns desses autores que nos deixaram exemplos mais proveitosos e encorajadores, alimentando o estado de vigília, e incitando em nós uma capacidade de avaliar e pôr em crise os símbolos do poder e os seus mais insidiosos condicionamentos.

Duration:03:31:26

Ask host to enable sharing for playback control

Futebol, o tubo de ensaio para os novos fascismos. Uma conversa com Luís Filipe Cristóvão

2/23/2024
Hoje é impossível escapar ao futebol, a essa redução essencial da tragédia a um espectáculo que segrega uma mitologia degradante, cercada de um fervor e de formas de culto alienantes, providenciando uma linguagem que chega a todos, um discurso que invade até o campo da religião, chamando a si termos como catedral, milagre, fé, comunhão, consagração, sagrado, salvação, ressurreição, veneração, inferno, o diabo ou a mão de Deus. À medida que o adepto se torna um fiel, benzendo-se em nome do seu clube, sacrificando-lhe e aos seus ídolos de chuteiras as suas preces, superstições, todos os seus sinais de devoção, por outro lado ganha expressão um regime adversarial através do qual “o medíocre se transforma em herói”, como nos diz Agustina, projectando-se “no furioso trabalho do peito, dos ombros, dos pés”, e resolvendo assim a sua agressividade, que o reduz a uma impotência cada vez maior, a uma cólera que vê na equipa contrária a representação de todos os males, toda a indefinição e bloqueio da sua própria vida. Tudo conspira para que o futebol assuma uma presença que vai muito para além dos estádios, uma ênfase desproporcionada que permite inocular o seu vírus, produzindo nas massas uma reacção coreografada, com as multidões a responderem à chamada, colocando-se em cena e dispondo-se a esse dever do confronto, a essas rivalidades fabricadas, a responderem hipnotizadas ao clarim de guerra. Multiplicam-se por todo o lado os sinais da contemporização face aos excessos a que são levados os adeptos devido ao clima de fervor produzido pelo “ininterrupto matraquear futebolístico do espaço público”, o que conduz a um estado de excepção em que, como sinaliza António Guerreiro, nos submetemos alegremente a essa “continuada violência simbólica, exercida através do empreendimento dos media”. O futebol surge assim como essa “religião laica do proletariado” (Eric Hobsbawn), na medida em que alimenta uma perspectiva de redenção, em que oferece este regime de intoxicação voluntária, com os fiéis deste culto a permitirem-se essa forma de delírio que, por alguns instantes, lhes permite esquecer o desencantamento da vida moderna, lendo nos caracteres do fenómeno futebolístico espalhados por toda a parte uma articulação para essas aspirações heroicas, uma sentimentalidade e emoção exacerbadas num confronto de alienados. E é esse delírio que permite que tudo seja permitido, e a corrupção se instale e normalize. Assim, à boleia dessa benevolência, a violência é normalizada, o ódio vê-se banalizado e torna-se um elemento chave que permite animar fórmulas de populismo, os nacionalismos xenófobos, os regionalismos atávicos e outras formas de ódios identitários ou racistas, originando “uma regressão cultural generalizada”. Marc Perelman defende que este tem permitido uma inversão das posições políticas tão profunda que, actualmente, “o chauvinismo e o nacionalismo engendrados pelo futebol já não são denunciados, mas postos em evidência como manifestações de uma revitalização dos povos”. Assim, vemos serem encenadas manifestações que nos transportam para uma nostalgia do fervor totalitário, um eixo de representações que preparam as condições para um fascismo de sorte alienante que serve para distrair inteiramente os homens do seu destino. Para nos oferecer alguma perspectiva e também para aprofundar ou reenquadrar algumas destas ideias, neste episódio contámos com a experiência e o conhecimento de campo de Luís Filipe Cristóvão, escritor que teve em tempos actividade como livreiro e editor, e que hoje é jornalista e comentador desportivo. A partir de um espaço mediático densamente povoado pela linguagem do futebol-indústria, Cristóvão tem procurado valorizar a dimensão comunitária e associativa do futebol, bem como arriscar a mobilização de um olhar sobre o jogo que procure pensar e problematizar as suas relações com a organização social e política.

Duration:02:54:52

Ask host to enable sharing for playback control

Subsídios para uma ecologia da literatura lusa. Conversa com Paulo Bugalho

2/16/2024
Goliarda Sapienza costumava dizer que os mortos deixam de ter razão se depois da sua morte ninguém os defender. Hoje essa advocacia fulgurante e desinteressada tem vindo a degradar-se, uma vez que os vivos estão demasiado empenhados em promoverem-se a si mesmos, a ponto de fazerem tábua rasa da memória e da tradição. Aquela autora italiana estava, ao mesmo tempo, bem ciente de que o tempo hoje é substancialmente antiliterário, e que vivemos num mundo que tende a estar todo cheio, permanentemente ocupado, distraído. Entre nós a única virulência que parece restar ao meio literário é o seu silêncio. Quem não engula a sua hóstia literata nem preste culto aos santinhos de altar ao dispor logo se vê ostracizado. Enquanto isso, culturalmente, o país vive absorvido por tematizações ligeirinhas, constantes inventários e balanços, generalizações supressivas e elencos que se organizam naquele regime do saco de gatos. Em vez de um lugar de tensões e de conflito, de um espaço prospectivo onde possamos desdobrar uma dimensão que não se restrinja às operações promocionais, damos por nós encarcerados nesses dispositivos religiosos da economia, que domina todas as manifestações. Neste ambiente desolador, nada nos deveria empolgar mais do que essa obstinação sempre desfeita, desencorajada, desenfreada com que cada um de nós tenta superar estes bloqueios e impedimentos. Em certo sentido, as obras marcantes da literatura portuguesa estabeleceram sempre uma relação vingativa com o esquema sentimental e moral que as cerca, manifestando a força daquilo que teve de se construir e operar na cladestinidade, contra o conformismo, contra os bonzos de toda a espécie e proveniência. Uma e outra vez, o que estas obras nos lembram é que a promessa de um mundo que começa com uma catástrofe não é necessariamente contraditória. Hoje, a própria esperança é algo que só conseguimos conceber depois de um longo período de devastação. Enquanto leitores, vamos por aí a dar pelos hieróglifos desse tempo que nos espera, criando, a contragolpe, uma espécie de euforia do luto. A escrita foi tida em tempos como a religião das pessoas que não acreditam em nada, que interrogam a sua noite, que se dispõem a mergulhar no desconhecido através do acaso. Num certo sentido, para o processo literário nos ser restituído, talvez o mais importante não seja a síntese, a bela totalidade, a prossecução de um regime unificador, mas operar uma série de profanações, participar pela distorsão, o esquartejamento, valorizando a diferença e a exterioridade em qualquer forma. Neste episódio, e para um diagnóstico mais profundo destas e de outras questões, socorremo-nos de um escritor e crítico literário que se obriga diariamente a fazer um desvio do ofício de neurologista, sendo um desses cada vez mais raros escritores que têm uma série de romances na gaveta, e que não abdicam daquela obstinação sempre desfeita, num tempo em que vivemos cercados de leitores preguiçosos, alheados, muito satisfeitos com os horizontes moles da cultura oficial e patrocinada, e em que os meios técnicos da comunicação e expansão nos condenam a apodrecer enquanto esperamos que chegue a altura de sermos contemporâneos da nossa consciência artística.

Duration:04:14:40

Ask host to enable sharing for playback control

O Anticristo e um Job lusitano entram num bar onde Rui Nunes tira as cervejas

2/11/2024
Este episódio surge como o nosso especial de Carnaval, depois de um convite da Livraria da Lapa, e com a proposta de lançarmos dois livros de naturezas bastante diversas, ainda que não inconciliáveis, de uma assentada. Se aquela tarde não for relembrada por mais nada, talvez o seja por uns poucos como um encontro num momento de desordenada suspensão, num momento em que, de diferentes formas, procurávamos ainda sobreviver sem nos perdermos numa "atmosfera literária de morna mediocridade", enquanto filhos de uma época merdonha, em que parece cada vez mais difícil vislumbrar a primavera de um tempo vindouro. Quando tudo se combina num efeito meramente cumulativo para nos oferecer essa perspectiva de uma "actualidade" que prescinde da história e da memória, há este receio de tudo estar condenado de antemão a alguma forma de esterilidade ou dissolução, mas este receio é em si mesmo indecente, sendo mais outra forma de cedência à passividade. É indecente porque significa de facto renunciar não só à excelência, mas também à nossa própria verdade, à tentativa de formularmos um ânimo colectivo que seja produtor de novas aberturas ou brechas. É renunciar provavelmente ao único heroísmo que nos resta, e que foi sempre esse esteio, essa força e vitalidade da literatura. Contra um ambiente de sórdida banalização e de fugas que se concertam para nunca coincidirem em nada de substantivo, quisemos encontrar-nos tendo como pretexto o aparecimento de dois livros estranhos, recusando esse regime de aligeiramento na relação com os textos, com a leitura, e que de algum modo estão ligados neste esforço de se aprender a carregar o fardo do destino que nos coube. Afinal, e por mais distracções em que se queira enterrar a cabeça e o juízo, a nossa própria vida segue e impõe-se em si mesma como um problema: como vivê-la? Se nos recusamos a uma exposição auto-celebratória, aos desfiles das belas almas que procuram reduzir a vida literária a mais outro concurso de moralidades hipócritas, por outro lado, também não cedemos a esse esforço de contrabandear como mercadoria proibida a nossa própria consciência. Tendo em conta o abandono e até a violentação pindérica a que os modos próprios da literatura se vêem sujeitos, não abdicamos desse confronto nem aderimos à noção de uma "aura" confeccionada a partir de tudo o que se serve do valor da distância, aquilo que sendo difícil de alcançar se torna belo por isso. "Belo e talvez com um toque de sagrado", diz-nos uma das personagens de Don DeLillo. "E a pessoa que se tornou inacessível adquire uma graça e uma inteireza que é motivo de inveja para os demais." Não estamos nessa. Não adulamos o escritor que ao não mostrar o rosto se convence de que assume assim o papel do demiurgo, invadindo território sagrado. Tanto escritor que, apenas porque deserta, se convence de que nessa suposta marginalidade está a jogar o jogo de Deus e aumenta assim as suas chances de cativar um lugar à mesa da posteridade. Por outro lado, entre o "País Rato", de Jorge Roque, e o "O Anticrítico", deste vosso canalha para todo o serviço, duas edições vindas a lume sob a mesma chancela (Maldoror), naquela tarde tudo estava perto demais da terra para significar outra coisa que não fosse um segredo violento, de tal modo que nos nossos gestos tudo exprimia aquela esplêndida pequenez que é a essência do bairrismo e que está na margem oposta ao ambiente elusivo do espectáculo. Talvez isso possa ser por si mesmo um regime de dissidência auspicioso.

Duration:02:15:22

Ask host to enable sharing for playback control

História do Cerco de Lisboa (e arredores). Uma conversa com António Brito Guterres

2/9/2024
De algum modo, hoje todos nos sentimos em perda, num luto sem um objecto certo, uma angústia difusa, convencidos de que somos incapazes de extrair um nexo desses dez mil farrapos de desinformação, condenados a alguma forma de neurose. Supomos que a realidade se tornou demasiado intensa, um enxame fervilhante cuja dispersão celular derrota a nossa capacidade de apreensão. A dolorosa imprecisão de todos os diagnósticos atravessa-nos uma e outra vez, desgastando-nos, e só raramente chegamos a compreender que, na verdade, isto não é próprio da realidade, mas de todas essas hipóteses virtuais que sacodem até corromper a consciência. Degrada-nos sentir como o futuro parece corresponder apenas às pretensões daqueles que estão alinhados com as multidões, esses que passam pelos dias cantando o êxtase de tudo aquilo que nos afasta do mundo. Como notou W.H. Auden, “a mais vulgar das torres de marfim é a do homem médio, esse estado de passividade face à experiência”. No sentido oposto, para nos guiar numa descida ao tão ameaçado enredo da realidade, neste episódio recorremos a António Brito Guterres, um sagaz intérprete que se baseia nos registos afectivos para cartografar esses territórios desfalcados, alguém que não se deixou dominar pela volúpia dos conceitos e da teoria, mantendo-se implicado e procurando superar esses instrumentos de análise obtusos que procuram reduzir todas as verdades a meia dúzia de fórmulas, mais ou menos rebuscadas, copiadas, memorizadas, passadas de mão em mão. Num esforço de vencer a perda de escala e de intimidade, este agente que traz os bolsos cheios de uma infinidade de chaves, não se limita a mapear, mas é ele mesmo um cerco à cidade num tempo em que esta parece estar a escapar. São cada vez mais as margens empurradas para uma forma ou outra de clandestinidade, e ele compreende melhor que ninguém que Lisboa ,como qualquer outra grande cidade, não é outra coisa senão um instrumento de medição do tempo. Não há melhor pessoa para pararmos na rua se quisermos saber com alguma precisão que horas realmente são. Num tempo em que dormimos e comemos imagens, rezamos a imagens, vestimos imagens, é bom podermos seguir alguém empenhado em desenhar um percurso incapturável no meio de nós, sem se perder nem se deixar arrastar por qualquer formigueiro. Um cicerone capaz de lançar a âncora quando todos zarpam atrás de miragens virtuais. Sem se reconhecer nas imagens dominantes ou nesses quilómetros de delírio que fazem das cidades um feixe do espectáculo que hoje está em toda a parte, Guterres dá-nos a ver o elemento de ruína que se esconde em todos esses projectos mírificos com que nos acenam, descortina os esquemas, expõe esta cidade como uma teia de aranha suspensa sobre um abismo.

Duration:03:38:27

Ask host to enable sharing for playback control

Exilados do próprio corpo, desterrados do desejo. Uma conversa com Joana Bértholo

2/2/2024
O regresso ao corpo seria a Odisseia dos nossos dias, pelo modo como vivemos dispersos, alheados, infinitamente desgastados, carregando um cansaço crónico, "ou melhor, de cronos", como escreve Joana Bértholo logo no arranque do seu livro mais recente, "O meu treinador". Estamos todos cansados de lidar com o tempo, com as incessantes compulsões a que vivemos submetidos, sentindo a nossa atenção consumida, constantemente aliciada, cativada ou capturada, comprada, subornada, defraudada, pervertida, presa. Como se lê no editorial do mais recente número da Electra, dedicado a este tema, "sem atenção, o mundo torna-se disperso, insustentável e até ausente - e nós dispersos, insustentáveis e ausentes nele". Se houve um movimento da Presença entre nós, o mais honesto seria reconhecer que vivemos hoje o seu oposto, num regime da Ausência, desfocados, incapazes de fixar os nossos próprios contornos, estamos contaminados pelo ruído. Regressar ao corpo seria recalibrar os instrumentos da nossa perseguição ao real, procurando restabelecer uma atenção tranquila e indestrutível. Seria desde logo necessário voltar à condição do principiante, aquele que é capaz de criar aberturas, inícios. De forma a evitar esta aniquilação em que somos coagidos pelos elementos que nos cercam, de forma a retomarmos escolhas e até erros próprios, teríamos de aceitar um largo período de suspensão, sem chegarmos a lado nenhum. Na linha daquilo que desejava Beauvoir, criando um percurso feito todo ele só de pontos de partida, tendo a humanidade em cada homem um novo ponto de partida. "E é por isso que o jovem que procura o seu lugar no mundo de início não o encontra e se sente desamparado, inútil, sem justificação." A nossa convidada neste episódio tem atrás de si um longo e exigente percurso em que foi obrigada a repensar bem os critérios pelos quais era avaliada ou se avaliava a si mesma, percebendo como muitas vezes o que parece um falhanço pode apenas ser a distância errada. Como assinalava Wallace Stevens, a nobreza da poesia “é uma violência interior que nos protege da violência exterior”. Hoje, resgatar a consciência e e possibilidade de definir um destino autónome não exige menos do que uma poética nestes termos. Cabe-nos escapar à guerra de concorrência sem tréguas que é travada em todos os planos, devassando a nossa intimidade, ao ponto de sermos expulsos dela, e perdermos a capacidade de nos defenirmos e também de sentirmos desejo. Nicholas Carr remete-nos para esse entendimento que colocava no início o Verbo, do qual a própria carne deve decorrer. Este autor assume a nostalgia do velho cérebro, isto é, do cérebro literário. Em oposição à distracção a que somos submetidos na época pelos media digitais, a cultura do livro favorece a concentração. O velho cérebro é, segundo Carr, uma mente linear, literária, que foi o fulcro da nossa sociedade, da arte e da ciência. António Guerreiro sintetiza a sua tese, vincando como o acesso a uma quantidade de informação e a experiências inimagináveis até há pouco tempo tem o efeito de alienar "o que temos de mais autêntico, já que os instrumentos entorpecem as nossas capacidades naturais mais humanas e mais íntimas, as do raciocínio, da percepção, da memória e da emoção".

Duration:03:26:48

Ask host to enable sharing for playback control

Uma última rave antes de Auschwitz 2.0. Outra conversa com Luhuna Carvalho

1/26/2024
Quando chegar a altura de erguermos o nosso próprio muro das lamentações, em tantos dos bilhetes deverá ler-se a muita pena de não termos feito mais festas, levado mais gente para a cama, talvez porque essa sim parece ter sido uma lição decisiva, a de que não poderíamos levar uma existência artística ficando limitados ao dia, mas deveríamos ter procurado por todos os meios alcançar a vida nocturna da humanidade bem como os seus mitos e símbolos. A embriaguez, o sonho capaz de pôr em causa a realidade do dia vivido e dele extrair certos pedaços, fragmentos bizarros, ordenando-os de forma ilógica num padrão arbitrário. Repetiremos as frases dos nossos mortos que testemunharam plenamente o absurdo, escrevendo-as e enfrentando-as como hieróglifos, tentando chegar ao fundo da sua razão de ser, mas teremos perdido toda aquela experiência que exige algo mais do que a inteligência. Deveríamos ter passado mais tempo a contar uns aos outros os nossos sonhos, a recriá-los, reconhecendo que nada na arte, nem mesmo os mais inspirados mistérios da música, é capaz de igualar os sonhos. Talvez só a exuberância das celebrações dionisíacas tenham permitido lançar as nossas sombras para lá dessa linha que delimita o campo do possível. Seria bom se tivéssemos escavado algum "covil de piratas, feito de pessoas que sabem desfrutar dos seus últimos momentos de liberdade, flores que sabiam durar apenas umas breves horas". Mas estamos dominados pela ânsia da duração, e a luz artificial é de tal modo constante que não chegamos a acostumar os olhos às trevas, a aprender a ler essas subtis variações do negro. Neste episódio, retomamos a indagação sobre os desastres que nos aguardam antes de ser tempo de reclamarmos de volta a condição política. Relembramos as palavras de Georg Büchner numa carta à família, assinalando como nos últimos tempos aprendera que "só a inevitável miséria das grandes massas pode produzir transformações e que qualquer agitação ou grito de indivíduos isolados não passa de estéril obra de loucos". E acrescenta: "Se escrevem, ninguém os lê; se gritam, ninguém os escuta; se agem, ninguém os ajuda... Não estou disposto a meter-me em jogos revolucionários infantis, nem na política de intrigas imperante". É um retrato do vazio em que nos sentimos afundar por estes dias. Por demasiado tempo acreditámos que seria possível opor algum tipo de resistência virando costas, perseguindo alguma fantasia até aos limites da realidade, mas não demorou muito até que nos víssemos circunscritos a um sótão qualquer, cercados de um museu desmazelado onde pululavam velhos manequins fantasmagóricos de uma loja de modas com um tal cheiro a mofo que este se introduziu nos nossos sonhos ao ponto de até neles termos dificuldade em respirar. Dos nossos sofás gastos vamos assistindo à bancarrota de todas as instituições da alegada maturidade emocional, como nos diz Luhuna Carvalho. Mas o mais difícil é imaginar o que seria capaz de nos fazer despir esta velha carcaça e sentir de novo o desejo de dançar com os outros. Acolhidos na sala deste cicerone marcial, quisemos explorar um outro tipo de constituição moral, começando por fundar de novo o conteúdo da ideia de "amizade". E a partir daí, aproveitando o balanço e a audácia desafiadora dos Houthis, pudemos lançar-nos a supor novos mundos em vez dos velhos. E aqui bem podemos guiar-nos pelo fervilhante onirismo de Joyce ao vislumbrar uma "união de todos, judeus, muçulmanos e gentios. Três acres e uma vaca para todos os filhos da natureza. Carros funerários-salão motorizados. Trabalho manual obrigatório para todos. Todos os parques abertos ao público dia e noite. Lava-loiças eléctricos. (...) Amnistia geral, carnaval semanal, com licença de máscaras, bónus para todos, esperanto a fraternidade universal. Não mais patriotismo de esponjas de bar e impostores hidrópicos. Dinheiro livre, amor livre e uma igreja laica livre num estado laico livre."

Duration:03:03:30